danças das zebras felizes

Pode não parecer, mas estou muito contente, penso que desta é que é. Num fulgurante lampejo de génio, acessível apenas aos predestinados como eu, tenho a visão do “romance #2” todo na cabeça. Tudo. Outra visão, agora à página 70. Deve ser a 3ª ou 4ª visão, isto é por camadas. De visão em visão, até à desilusão final. Para festejar, uma música.

Mac DeMarco // “Ode to Viceroy”

deserto

celineLembrei-me do Céline, há dias, em conversa sobre escritores de que gostava e dessas coisas. Quis escrever sobre o Viagem ao Fim da Noite. O que sobrou foi mais ou menos um conjunto de lugares comuns sobre livros que mudam vidas e uma conclusão temporária, a de que são mais do género nutriente, o fundamental está escrito nos genes, predestinado. Alguns putos aparecem cactos no deserto a esticar raízes pelo solo duro coberto por uma camada de pó e areia, à espera de uma qualquer chuvada e alguns livros fazem isso, regam. É pena que com a idade tenhamos uma inevitável tendência para secar o solo e criar casca grossa, constituindo notáveis excepções aqueles que continuam sempre atentos, de folhinhas e raízes esticadinhas, a vida toda, à espera de novas chuvas. Peço desculpa pelas metáforas vegetais, mas ando a ler um livro sobre jardinagem por causa do meu terreno nas traseiras que, entregue à sorte dos elementos, resolveu brindar-me com uma luxuriante trepadeira com enormes flores azuis, cobrindo não só o meu terreno e as árvores nele contidas, mas invadindo também parcialmente os espaços cuidadosamente arranjados dos meus vizinhos. Que monstro é aquele?

soa bem, soa mal #2

Soa mal:
Madrasta. Em francês substituiu-se “marâtre” (som horrível) por belle-mère, o que, literalmente, querer dizer “bela mãe”. Também se usa para sogra. Fizeram-no para substituir o pesadíssimo marâtre que tem uma conotação fortemente pejorativa. Não é apenas o madrasta que soa terrivelmente mal. Enteado. Nora. Cunhado. Seja o que for, relativo a parentescos fruto de casamentos e não de sangue (primo, irmão, filho, pai, tio), soa tudo terrivelmente mal. Termos carinhosos como “mano” ou “papá” soam naturais. “Cunhado” é uma coisa para moedas. Madrasta tem sonoridade de caveira a rir-se no escuro. Nora remete para o rural da nora, no moinho, é tosco e rude. Enteado soa a “entalado”.

Soa bem:
Espalho, tralho, paspalho e outra coisa acabada em alho que me vêm à cabeça quando leio notícias sobre o torpedo de luxo que o Paulo Portas encomendou para os seus submarinos.

outro rabisco, 3 horas depois

No meu pátio, acabo com o resto da garrafa de casal garcia. Oiço vários focos de animação musical estival. Há um que se destaca, uma atracção de feira, um tum tum tum e uma voz de homem entusiasmada a anunciar algo, totalmente fragmentados pelo vento forte que se faz sentir, na paisagem feita de dunas e planícies, por entre prédios e urbanizações dispersas.
Está escuro, menos aqui debaixo deste candeeiro de rua que nos calhou em frente à casa. Gosto de olhar para a minha velha bicicleta, acorrentada à vedação do pátio. Gosto de lhe ver a ferrugem e o salitre, [rabisco ilegível] micro clima agreste desta zona, feito de ares marinhos, neblinas e ventos, nos aproximasse um do outro numa cumplicidade secreta.

rabisco em papel e caneta

Notam alguma coisa diferente? Nada? Pois bem, este texto está a ser manuscrito num caderno que comprei no Intermarché de Peniche. Evidentemente, o que vocês aqui vêem foi passado no computador, suponho que num domingo à noite (*confirmo). Há muito tempo que não escrevia à mão e ocorrência milagrosa deve-se a ter-me esquecido do carregador do meu velho portátil quando fiz as malas para vir para aqui. Fiquei furioso quando percebi que não estava na minha mala e de seguida muito angustiado. Não apenas pela escrita, mas porque contava ver a season 3 dos sopranos e agora ficamos, eu e a A., num estado semi-primitivo de ter apenas televisão em canal aberto. Escrevo muito mais depressa no computador do que à mão. Para além de ser canhoto e de segurar a caneta com a destreza de um símio que sofreu um AVC, custa-me manter uma caligrafia uniforme. Cada letra sai diferente de palavra para palavra. Falta de prática. Mas aquela que é para mim a maior diferença é mesmo a velocidade de execução e de pensamento. Na escrita à mão, penso mais rápido do que executo. É como se estivesse a copiar ou a fazer um ditado. A frase materializa-se no vácuo da imaginação antes de ser escrita. No computador, o processo é simultâneo, automático, o pensamento flui à velocidade dos dedos e vice versa. Assim como recomendam ao corredor que treine em ritmos diferentes ou ao jogador de poker para experimentar variantes diferentes (homaha, holdem etc.) para o obrigar a pensar e não ser tudo automático, também acredito que esta troca forçada de computador pelo papel me fez ver um exercício do género a desenrolar-se. Por pudor, excepto numa fase em que fazia torres vedras lisboa todos os dias e escrevia no autocarro, nunca escrevo em público. Podia ir para um café e armar-me, mas já me basta ler ao almoço e encher os livros de molhos diversos. Descrevo sucintamente (já me dói a mão) em que consiste o meu cenário. Sábado 19:20, Baleal. O sol já se escondeu por detrás das casas e sopra um vento forte e gelado de uma direcção muito rara por estas bandas. Normalmente quando sopra de Oeste ou Norte a minha casa protege o pátio. Hoje parece vir de sul e lança o caos aqui. A lata de cerveja chegou a entornar-se numa rajada mais forte.
O meu transe desinspirado é interrompido pela A. que assoma à porta de casa, desconfiada de que eu estivesse a comer. Explico-lhe que não estou a comer, estou a escrever à mão e mostro-lhe tudo o que já fiz. Mostra-se desiludida e pergunta de novo se não estou a comer. Asseguro-lhe que não, não tenho comida nenhuma. Deve ter sido o rabiscar da bic na folha por cima da mesa de metal que a atrauiu. Tenho o capuz enfiado pela cabeça abaixo e bem apertado. Dormi uma sesta de três horas hoje. Três horas. Li num artigo que o som do mar tem um efeito qualquer nas ondas alfa do cérebro. Isso explica porque sou acometido de ataques de narcolepsia nesta região. Vou ler um bocadinho d “A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket” do Poe, depois cozinhar um esparguete à bolonhesa e abrir uma de vinho. Ate já. dói-me as mãos e as costas de estar todo torcido.

troikanina

A minha mãe foi operada ao joelho. Anos e anos a passear cães que a puxam como a uma troika tresloucada pelos terrenos lavrados e caminhos de pedras da zona oeste deram nisto: joelho desfeito ao aproximar-se dos 70 anos, já para não falar nas atroses de se agachar para cuidar do imenso jardim florido. Telefonei-lhe e troquei dicas de treino de corrida com ela. Gelo, evitar vinho (indignação dos dois lados da linha e risos) e ténis confortáveis. Foi estranho ouvir-lhe a voz a vir de um hospital. Enjoada da anestesia, vacilava como uma chama em corrente de ar. Não gostamos nada de hospitais. Foi só o joelho, nada de mais, mas foi a primeira vez que a ouvi assim. Ela diz que já não vai passear as cadelas, diz que não consegue aguentar com as quatro a puxar. Eu, entretanto, já fiz umas pesquisas e penso que quatro não chegam, mas oito e um patrocínio devem ser suficientes:

fall-dog-sledding

incompreensíveis recados

O draft do meu romance #2, tal como o do #1 enquanto era escrito, contem algumas instruções para o que deve acontecer, em linhas gerais, só para não perder o fio à meada quando interrompo uma sessão com a cabeça cheia de ideias para as próximas 50 páginas, e essas instruções deveriam servir para os dias seguintes, para não estar perdido. Às vezes, num assomo de imperdoável ingenuidade, acho que já delineei o romance todo e que a partir dali é só colorir dentro das linhas, numa rotina pachorrenta. Contudo,  vejo-me constantemente a apagar e reescrever essas instruções. Quando volto a elas passado semanas ou mesmo meses, especialmente o bloco no início do draft que estabelece (risos) o que quero fazer daquilo tudo, sinto-me como um paciente com alzheimer que descobre um post-it escrito com a sua caligrafia com misteriosos e incompreensíveis recados que pediu a si próprio para fazer. Depois volto a meter mais instruções e ideias que me vão aparecendo nos momentos em que pego no cachimbo (imaginário) e reflicto sobre o que faria daquilo um enorme livro, ambicioso, assim de nível upa upa, em vez de apenas uma coisa que é a possível. E combato o mesmo tipo de ansiedade que me acomete quando, a explorar com a bicicleta de BTT, me meto por um caminho a descer, sem saber se tem saída ou se vou dar de trombas com um rio ou uma cerca de arame farpado e vou ter de subir tudo outra vez, para nada.