Notam alguma coisa diferente? Nada? Pois bem, este texto está a ser manuscrito num caderno que comprei no Intermarché de Peniche. Evidentemente, o que vocês aqui vêem foi passado no computador, suponho que num domingo à noite (*confirmo). Há muito tempo que não escrevia à mão e ocorrência milagrosa deve-se a ter-me esquecido do carregador do meu velho portátil quando fiz as malas para vir para aqui. Fiquei furioso quando percebi que não estava na minha mala e de seguida muito angustiado. Não apenas pela escrita, mas porque contava ver a season 3 dos sopranos e agora ficamos, eu e a A., num estado semi-primitivo de ter apenas televisão em canal aberto. Escrevo muito mais depressa no computador do que à mão. Para além de ser canhoto e de segurar a caneta com a destreza de um símio que sofreu um AVC, custa-me manter uma caligrafia uniforme. Cada letra sai diferente de palavra para palavra. Falta de prática. Mas aquela que é para mim a maior diferença é mesmo a velocidade de execução e de pensamento. Na escrita à mão, penso mais rápido do que executo. É como se estivesse a copiar ou a fazer um ditado. A frase materializa-se no vácuo da imaginação antes de ser escrita. No computador, o processo é simultâneo, automático, o pensamento flui à velocidade dos dedos e vice versa. Assim como recomendam ao corredor que treine em ritmos diferentes ou ao jogador de poker para experimentar variantes diferentes (homaha, holdem etc.) para o obrigar a pensar e não ser tudo automático, também acredito que esta troca forçada de computador pelo papel me fez ver um exercício do género a desenrolar-se. Por pudor, excepto numa fase em que fazia torres vedras lisboa todos os dias e escrevia no autocarro, nunca escrevo em público. Podia ir para um café e armar-me, mas já me basta ler ao almoço e encher os livros de molhos diversos. Descrevo sucintamente (já me dói a mão) em que consiste o meu cenário. Sábado 19:20, Baleal. O sol já se escondeu por detrás das casas e sopra um vento forte e gelado de uma direcção muito rara por estas bandas. Normalmente quando sopra de Oeste ou Norte a minha casa protege o pátio. Hoje parece vir de sul e lança o caos aqui. A lata de cerveja chegou a entornar-se numa rajada mais forte.
O meu transe desinspirado é interrompido pela A. que assoma à porta de casa, desconfiada de que eu estivesse a comer. Explico-lhe que não estou a comer, estou a escrever à mão e mostro-lhe tudo o que já fiz. Mostra-se desiludida e pergunta de novo se não estou a comer. Asseguro-lhe que não, não tenho comida nenhuma. Deve ter sido o rabiscar da bic na folha por cima da mesa de metal que a atrauiu. Tenho o capuz enfiado pela cabeça abaixo e bem apertado. Dormi uma sesta de três horas hoje. Três horas. Li num artigo que o som do mar tem um efeito qualquer nas ondas alfa do cérebro. Isso explica porque sou acometido de ataques de narcolepsia nesta região. Vou ler um bocadinho d “A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket” do Poe, depois cozinhar um esparguete à bolonhesa e abrir uma de vinho. Ate já. dói-me as mãos e as costas de estar todo torcido.