sonho

Estou há mais de duas horas a tentar escrever este texto. Pelo meio já andei com ela pela casa toda, ao colo, já lhe dei um banho spa style e já a levei à cama onde a mãe lhe deu de mamar e voltou a dormir, esgotada que está da intermitência do seu repouso. Olho para a Júlia, tão pequena que me cabe deitada no ante-braço, a cabeça na mão em concha. Fico horas a olhar a minha filha bebé. Ainda não me habituei bem à ideia de ser pai. A sensação que tenho, quando ela olha para mim e parece pasmar um pouco (estará tão intrigada quanto eu?) é a de estar perante um ser divino que se metamorfoseou em bebé e desceu à terra. Nos momentos em que ela sorri de olhos postos em mim e eu lhe falo baixinho, sinto que se abre um portal entre o mundo terreno e algo infinito e misterioso. Afinal de contas, de onde veio ela? Fecundação, ADN, células que se multiplicam… Isso é o mesmo que descrever uma pintura de Caravaggio com coordenadas cartesianas e códigos RGB. Nos momentos intensos em que os nossos olhares se cruzam e fixam um no outro, sinto o coração trespassado por uma flecha de Cupido e sou um pouco mais pai dela. Também lhe vejo, em estado puro, os traços instintivos herdados, como o franzir preocupado das sobrancelhas em ponderada reflexão, uma coisa minha e do meu pai. Tirando isso, o nariz de ouriço e o cabelo castanho escuro, parece sair à beleza da mãe, o que é bom. Percebo também a sorte que tive em ter uma menina. Posso-me apaixonar sem reservas. Com um miúdo, acho que teria sempre um travão afectivo qualquer. Sinceramente. Se calhar não lhe dava uma beijoca nas bochechas, mas sim um abraço e palmadinhas nas costas. Não sei explicar. Teria vontade de fazer dele um homem. Esta menina já me parece uma menina e que não é preciso eu fazer nada dela. Mais menina do que isto é impossível. Falamos muito. O que acho extraordinário – apesar de vir em todos os livros – é o facto dela precisar de mim e da A., agora. No sentido de precisar de amor (e não apenas de comida e mudas de fralda). Às vezes está irrequieta e ameaça desabar numa tempestade de choro, mas falo com ela, pego-lhe ao colo, mostro-lhe qualquer coisa, aperto-a contra mim, e ela acalma. Isto é tudo muito estranho. Pelo meio, um desejo enorme que ela me reconheça e à A. como pais dela: olha, gosta de nós, por favor, vamos fazer o nosso melhor… Às vezes, vendo a descontracção com que ela se alonga e relaxa no meu antebraço, enquanto deambulo pela casa a fazer coisas, fico um pouco perplexo com a confiança cega que ela parece depositar em mim, em nós, visto que depende de nós para tudo. É uma sensação inexplicável, esta, a de confiarem totalmente em nós, sem reservas, assumindo que se vieram cá parar, é porque está tudo bem e estão em boas mãos. E ainda dizem que isto não é sobrenatural…

 

Os bebé, sonham com o quê? E os coelhos de peluche que os imitam?

peluche

5 thoughts on “sonho

  1. A descoberta do mundo depois de ser pai ou mãe é a descoberta desse pedaço de nós que nos modifica a percepção das coisas a cada dia que passa. Eles crescem e o nosso amor incondicional cresce com eles. Nós somos as Torres, as fortalezas que protegem os nossos reis e rainhas no xadrez do universo durante toda vida. E são nossos, só nossos, os nossos amores. Muitas felicidades ! Ah! O Coelho só pode sonhar acordado com a sorte que tem por ser o Bunny da Júlia. 🙂

  2. A tua filha é linda e eu estou com um nó na garganta, porque puseste por palavras tudo o que senti quando os meus filhos nasceram. Com a agravante de que passei a olhar para eles de forma algo selvagem. São as minhas crias, não se metam com eles.
    Parabéns aos pais, nunca mais se vão sentir sozinhos.

  3. A parte do ter sorte de ter uma menina, também a percebo. Tenho 3. E penso sempre que se tivesse tido um rapaz teria o bónus de ter a colecção inteira de bonecos do Star Wars mas isso não compensaria os beijos que dou e recebo das minhas pimpolhas. Percebo perfeitamente o travão afectivo, é giro quando outras pessoas pensam como nós e o escrevem. Parabéns pela Júlia, é linda.
    Parte importante desta fase, apoiar a mãe. Tive 3, sei do que falo 😉
    Nuno Rechena

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