Uma das coisas que me ficou da doença e morte do meu pai, e do contacto diário com doentes do IPO, foi esta dependência do corpo que nos é completamente invisível e inexistente para nós, exceto quando estamos doentes e ele nos dói ou limita. Tanta poesia, sonho, stress e paixão, e depois somos carne, osso, sangue e um dia tudo é relativizado ao absurdo. Ficamos só nós e as nossas células moribundas. Perdi 7kg desde que comecei a correr em Julho e a minha % de body fat passou de 16.5% para 13.5%. A pouco e pouco, fico parecido com aqueles maratonistas esqueléticos, incluindo as lesões (agora é o iliotibial band syndrome na perna direita). Gosto desta nova sensação de leveza que não sentia desde os tempos da universidade em que, paradoxalmente, queria era ganhar massa e ser mais pesado, pois detestava ser magrinho. Gostei também de reencontrar um “eu” ainda mais antigo que, como todas as crianças que se esgotam em correrias, sem noção do esforço, passava os dias a mexer-se no campo. Inscrevi-me nos 42k da Maratona de Madrid de 27 de Abril de 2014. Há quem diga que é muito cedo tentar já uma distância tão grande, mas todos os dias de manhã mudo as fraldas a um pequeno ser que me sorri por entre bocejos e caretas e que resultou, em boa parte, do mesmo tipo de filosofia e de pressa.
Month: Outubro 2013
dilúvio
As miúdas foram dormir a casa da avó e eu fiquei entregue aos cuidados do meu amigo J. e R. Vimos a bola, fomos para a Pensão do Amor e depois para o Plateau. A última vez que fui ao Plateau havia dinossauros em certas zonas do globo e a última vez que fui ao Cais do Sodré sair à noite, a Fabiana do Viking era magra e bonita. Quanto à Pensão do Amor, mantenho a primeira impressão com que fiquei há uns tempos: enerva-me. Aliás, no meu primeiro romance não publicado ainda (ainda) descrevo um Cais do Sodré que já não existe, mas não fiz de propósito e talvez os alfacinhas topem o anacronismo. Ficou assim, o da minha memória. Nos anos 90 aquilo era interessante: uma zona da cidade onde me sentia a passar um risco, uma fronteira. Depois virou tourist trap. Acho poucas coisas mais decadentes / hipócritas do que a exploração asséptica do “marginalismo fast food”. Depois fomos a pé para Santos, debaixo de um dilúvio inacreditável. O Plateau, esse, continua igual, decadente, muito bom. É aquele sítio onde se vai de xis em xis anos e as pessoas têm sempre a nossa idade. A música não arrisca, é clássico atrás de clássico. Gostava de descrever mais, mas lembro-me de pouco. Fiz chichi ao lado de uma pessoa famosa, mas prefiro não dizer quem era por questões de privacidade. Acordei em casa e não perdi documentos, telemóveis ou chaves, o que é muito bom, tendo em conta. Já comi o tradicional Big Mac pós noitada e tudo.
bolhinhas
Sempre estranhei que fizessem bonecos de bebés que deitassem bolhinhas pela boca. De todas as coisas de que se podiam lembrar, por que raio as bolinhas pela boca… Agora que os dentes lhe ameaçam começar a crescer, já percebo. Até cheguei a pensar que estivesse com raiva, porque este fim de semana fomos visitar os cães da minha mãe. Estou a ponderar ir para o Chiado, dar-lhe um pouco de sonasol na chupeta, metê-la a soltar bolinhas e pedir dinheiro, a ver se ela se começa a pagar a si própria, que este investimento até agora tem sido extremamente deficitário.
sunday bloody nipples
Pois é, tinha de haver uma primeira vez. Eu bem que estranhei, ao chegar à zona do Campo Grande, nos últimos km depois de uma corrida épica de 15km por Monsanto, tanta gente se virar para mim. Primeiro pensei que fosse do meu equipamento. Gosto muito de amarelo fluorescente, em particular quando começo uma corrida domingo às 7 da manhã, é de noite ainda e há muito jovem alcoolizado a conduzir de volta da boite. Mas não… só percebi depois de beber água avidamente de um bebedouro do jardim do Campo Grande: a minha bela t-shirt amarelo fluorescente da nike run tinha duas belas manchas de sangue nos mamilos a desenvolver um padrão do estilo Jackson Polock por ação da gravidade. Felizmente saíram depressa com um pouco de água do bebedouro. E felizmente dei por elas antes de passar a correr pelos larilas das piscinas abandonadas, que a eles se lhes cheira a sangue podia desperta-lhes um qualquer instinto sadomasoquista e eu já não conseguia correr mais. Ah sim, no jardim do Campo Grande há umas piscinas abandonadas que têm o gradeamento todo destruído e há sempre uma actividade muito intensa, 24h por dia. No início não percebia por que motivo havia sempre um ou dois tipos parados à frente daquilo, com ar suspeito, como quem não quer a coisa, mas depois de ver um par deles a sair de dentro de um casinhoto abandonado, percebi que o que eles mais querem é a coisa. Tive de ir o resto do caminho para casa com a mão debaixo da t-shirt, a fingir que estava a sentir o meu ritmo cardíaco com a mão, muito preocupado com a eventualidade de um ataque. Ao chegar a casa pedi um creme de mamilos emprestado à A. É um creme muito nutritivo e eficaz, que as mulheres que estão a aleitar utilizam. Quem diria que podem dar jeito a um corredor que fez hoje trail em Monsanto pela primeira vez? É que podia escrever sobre isso. Sobre ir por Lisboa, subir até Monsanto, ver o nascer do sol, descer por trilhos e levar com teias de aranha de 50 em 50 metros… Foi épico. Mas o texto já vai grande e conhecedor como sou dos gostos literários dos meus leitores, penso que contei o essencial da experiência.
um mistério
Duas contas online a que não consigo aceder porque me esqueci da passwords. São daqueles sites a que vamos uma vez por um motivo prático (ex paypal) e depois nunca mais lá vamos até ao dia em que precisamos deles outra vez. E quando voltamos lá, surpreendem-nos com a mensagem “já existe uma conta com esse e-mail”. As perguntas de segurança para recuperar as passwords são: “qual o seu autor favorito”.
Mistério. Não sei qual era o meu autor favorito na época em que criei essas contas. Suponho que o “eu” que criou aquelas contas preferiu essas questões às muito mais perenes “qual o nome o seu primeiro animal de estimação”. Experimentei vários autores possíveis de acordo com fases da minha vida, não deu nenhum. Tendo em conta a minha ligeira dislexia no que respeita a escrita de nomes próprios estrangeiros, não tenho tentativas suficientes para testar todas as variações de ortografia do nome do mesmo autor sequer, por isso, paciência. Um mistério que perdurará para sempre.
playlist
Deixo aqui no youtube uma das playlists que criei para utilizar nas corridas mais longas. Estas faixas foram testadas nas condições mais difíceis, ao longo de muitos quilómetros e exigiu muito suor derramado (pingado?) Ao contrário das típicas listas de workout ou corridas que encontro disponíveis, esta tem um ritmo aparentemente lento, mesmo com algumas faixas sem qualquer componente rítmica (ex, as duas de Boards of Canada) e com elementos que se fundem com a natureza disponível na 2ª circular e na avenida da república, bem como com o trânsito intenso de corredores no Estádio universitário de Lisboa, em total harmonia. O objectivo é criar uma paisagem sonora que não seja agressiva / cansativa e ao mesmo tempo que favoreça a indução de um estado de transe. Tem também variações dinâmicas para “acordar”, como a faixa de Ratatat por exemplo. Durante a corrida posso mudar para outras listas caso me apeteça (é permitido por mim fazer isso), nomeadamente uma de pop /rock que tem faixas do caneco. E pronto, também serve de música para Excel e eventualmente powerpoint. A ordem pode mudar. A melhor faixa para correr, de sempre, é a Open Eye Signal do Jon Hopkins e não, ao contrário do que se julga, a Eye of The Tiger. Essa até fica atrás do Living on a Prayer do Bon Jovi (tenho de fazer a minha lista de pop rock para correr).
Ministro Tomahawk
Não deixa de ser irónico que este Governo, em particular o muito eficiente Ministro Machete, tenha colocado as relações de Portugal com Angola num patamar um pouco menos promíscuo do que estavam antes, mesmo que o objetivo da atuação tenha, ao que tudo indica, sido o oposto. Que pena não ter sido este o executivo na Cimeira dos Açores quando lá foi o Bush pastar o Barroso e o Aznar naqueles campos viçosos. O Machete (alcunhado de Tomahawk no meio diplomático) havia de arranjar forma de Portugal não se meter nesse desastre. Nem que entornasse um tacho com chanfana a ferver para o colo do Bush.
coisas que me cansam…
1. Discutir se mais vendas / público / leitores / ouvintes significa pior qualidade artística e vice versa.
2. Alguém do marketing dizer que é preciso romper paradigmas colocando a tónica na criatividade.
3. Carros em segunda fila quando há lugares disponíveis uns metros à frente.
4. Pessoas que ‘forwardam’ mitos urbanos por e-mail ou facebook sem sequer se dar ao trabalho de fazer uma simples pesquisa para confirmar se são verdadeiros.
5. Pessoas que perante um desmentido respondem ‘não sabes, pode ser verdade’.
6. A RTP existir e eu pagar por ela, agora ainda mais.
7. Pessoas que estacionam o carro em frente a cancelas de parques de estacionamento e vão depois pagar o tiquet.
8. Adultos a serem velhos com o discurso do “hoje em dia os jovens são isto e aquilo, no meu tempo blah blah”
9. Greves do metro.
10. Correr 5x por semana, mas no bom sentido.
…depois em casa, ouvimos um remexer numa gaveta, abrimos a gaveta e… surpresa! Um prático bebé com as baterias carregadas e predisposto a interação por intermédio de sorrisos e vocalizações primitivas!
Acabaram-se os problemas e as canseiras.
(até lhe dar a birra das onze e pouco porque eu a cansei demais)
corrida da água
Hoje foi a Corrida da Água (10K) em Monsanto. Fiquei contente de melhorar o meu tempo dos 10K em mais de 4 minutos apenas um mês depois da minha primeira marca na Corrida do Tejo e numa prova com uma altimetria bem mais difícil.
Apesar de ser novo nestas andanças e sendo esta apenas a minha 2ª corrida “oficial” de 10K, posso fazer uma comparação entre a Corrida do Tejo e a Corrida Água. A questão da altimetria e da óbvia diferença geográfica (marginal beira rio vs Monsanto e Aqueduto das Águas Livres) é muito relevante. Tive dificuldades em acertar o ritmo e ia estoirando a 4km do fim. Num percurso flat como a beira rio podemos escolher uma cadência e instintivamente aumentar e diminuir o ritmo. Não há surpresas. Mas num percurso que raramente é totalmente plano, com segmentos a subir e com curvas que impedem de ver os próximos 100 metros e com descidas muito longas, o pace flutua. Podemos ir a descer a 4:00/km para subir a 6:10/km ou mesmo 7:30/km o ou a andar, como vários tiveram de fazer a 2km do fim na subida para a Maria Pia. Sabia que para bater o meu recorde tinha de fazer abaixo 5:35/km em média, mas quando me vi a fazer uma subida a 6:10, comecei a sentir-me impaciente e exagerei na descida seguinte para compensar, vendo-me depois, progressivamente mais lento ao longo da corrida, até chegar ao empeno épico da subida em Campolide, que mesmo assim consegui passar, mas que me deixou a ver tudo turvo nos 2km restantes (mereci um extreme sufferfest no strava)
Outra diferença substancial tem a ver com a escala da organização, do evento e do número de participantes. A corrida do Tejo tinha mais de 10 mil e esta tinha pouco mais de mil. Se é verdade que na Corrida do Tejo me senti mais “feliz” devido à vista fantástica e pela presença de pelo menos 3 amigos (o Tiago, o Zé e a Patrícia), e um pouco eufórico pela dimensão do evento, também é verdade que me incomodou muito a multidão nos primeiros 2-3km! Se quero um dia fazer os 10k abaixo de 45 min é para ver se já posso partir de um “gate” de sub-45 e não numa multidão de pessoas com ritmos completamente diferentes que por vezes andam aos S’s, aos pares ou 3 e 4 lado a lado e param para tirar fotos. E mesmo no fim da corrida, a multidão não estava assim tão dispersa que não me obrigasse a um slalom. Não houve nada disso na Corrida da Água. Uns 200-300 metros depois da Meta e já havia espaço suficiente para todos irem ao seu ritmo e mesmo nas secções estreitas como a ciclovia da CRIL ou o Aqueduto das Águas Livres, havia mais espaço do que nas 4 faixas da marginal.
as grandes questões
tenho mesmo a sensação de ser fulminado quando a minha bebé que tem apenas um mês e meio olha para mim e sorri com um sorriso enorme, e fica a sorrir e experimenta esboços do que seria riso e se torce toda com o ar mais maroto e brincalhão de sempre, com os olhos completamente vidrados nos meus, alterando as expressões para o espanto, o riso, a preocupação… e o riso outra vez. Passou mais de um mês e continua a ser um pouco surreal. Os meus amigo pais há mas tempo, nem que seja apenas 1 ou 2 anos, dizem que depois é ainda melhor, quando começa a haver uma interactividade, conversa… e eu acredito plenamente. Mas também sinto que os pais se esquecem das etapas anteriores à que estão a viver naquele momento. Eu sinto uma interacção total com a Júlia, uma comunicação completa, sem palavras. Do lado dela há apenas um maravilhamento e espanto com o mundo, do qual eu faço parte. Que ela se ria quando olha para mim, não me admira nada, é o que mereço e faz-me bem. Isso e quando ela dá uma violenta e sonora cagada num destes momentos de bonding pai-filha em que penso que estamos a atingir um planalto espiritual elevado…. de repente… PFFFFfffRRRrrrRRRRBLLLLRRRrghhh… E depois ri-se.