homicídio por negligência

Anuncia-se a constituição de João Gouveia como arguido. Vem tarde. Desde o início da tragédia do Meco que sabia que a versão oficial contada às autoridades não tinha pés nem cabeça. Especulações de lado, escrevo isto a propósito da possível acusação de homicídio que os jornais vão adiantando e os inúmeros e surpreendentes comentários e posts de pessoas que dizem “não foram obrigados” ou “eu fui praxado e foi porque quis” transpondo isto para a esfera do “acidente infeliz” e que a responsabilidade foi dos miúdos porque aceitaram ou que não foi de ninguém.

Se aqueles jovens aceitam uma relação de hierarquia, quem dá ordens é responsável. Neste caso é extremo. Pelo que vem a lume sobre os rituais, pelo tenebroso e aviltante voto de silêncio de jovens da universidade, pelo facto de alunos com anos de matrículas ainda se submeterem a rituais como rastejar com pedras, pelo facto de em anos anteriores haver sempre o mesmo ritual (olhos vendados, recuar em direcção ao mar, etc.) aqueles jovens levam mesmo aquilo a sério. Se a ordem foi para se aproximarem do mar ou mesmo entrar nele, estando o mar naquele estado (lua cheia, via-se bem) de noite, numa praia deserta, eventualmente de olhos vendados, essa pessoa é responsável por homicídio por negligência, como seria responsável se os mandasse caminhar pela serra de sintra todos nús e eles morressem de hipotermia.

Se quem dá uma ordem está consciente de que ela vai ser obedecida, essa pessoa é responsável, uma vez que ela deu a ordem partindo do principio que seria obedecida. Não havia intenção de matar, é certo, mas não é o mesmo que um acidente. Desresponsabilizar uma ou várias pessoas quem têm como objectivo de vida académica chamar a si responsabilidade de comandar os outros, como o caso de um Dux, quando algo corre mal, parece-me no mínimo contrário ao mais elementar sentido de justiça. É preciso traçar a linha em casos concretos em vez de passar eternidades a discutir becos sem saída como “a proibição das praxes”.

Kafka no céu, Hasek na terra.

Terminou, por entre salpicos de gordura de pernil de porco e espuma de cerveja, o calvário do meu exemplar do Soldado Svejk. A capa parece que passou pela batalha de Verdun, sobreviveu e foi festejar para um bordel improvisado. O final do romance é abrupto, o que costuma ser o caso quando o autor não consegue continuar a obra em virtude da contrariedade do seu falecimento. A excepção a esta regra pode encontrar-se em contos e mesmo livros inteiros de JR Tolkien que foram terminados anos depois da sua morte pelo filho e respectivos editores com base em apontamentos do género “há um orco que se apaixona por uma elfa e um anão ciumento, desenvolver”. Outros livros, como os do Gonçalo M. Tavares, parecem escritos por um ser não vivo, visto não se sentir pulsação nenhuma nas entrelinhas, ao ponto do bom leitor com curso de socorrismo se sentir instigado a fazer manobras de reanimação ao texto, com apontamentos a lápis, rabiscando as longas elucubrações filosóficas de personagens com nomes judeus e substituindo-as por alternativas como “eu gosto é de mamas” ou “ia a dizer agora qualquer coisa profunda mas esqueci-me”. O Bom Soldado Svejk entra no panteão das obras que me entusiasmam. Nunca leio na perspectiva passiva de um qualquer leitor comum, desses que para aí anda embasbacado com a grande literatura, mas sim na visão de um aparentemente eterno aspirante a escritor que gosta de ver que certos impulsos, latentes e muito inseguros, podem seguir por caminhos novos, de guerrilha, evitando habilmente o confronto com a artilharia pesada de autores de quem gosta muito, mas que são de outro calibre, como uma beata que prefere a intermediação do santinho na capela a dirigir-se assim de chofre e com grande lata a Deus nosso senhor.

E agora uma música engraçada.

as mulheres lá de frança – updated

A França é, como se sabe, um país onde os políticos estão sempre a meter a baguette na compote. Enquanto que nos EUA uma simples brincadeira com charutos na patareca da estagiária é motivo para um linchamento público e dá direito a impeachment, na França, colocar a saucisse no camembert faz parte do carisma necessário ao cargo. Até aqui tudo bem. Que deixa matéria para reflexão é o facto de, em França, ser político parecer conferir ao homem um poder de atracção irresistível, facto que não se verifica de todo em Portugal.  O François Hollande parece o cruzamento de António Vitorino com António Seguro.

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Como conseguiu o croissant da Valérie Trierweiler, uma beldade clássica? E a tarte a tatin da bela e madura Julie Gayet? Estas Valerie Trierweilers ou Julie Gayets não são as betinhas de criação do Santana Lopes ou as prostitutas do Berlusconi. Só se pode explicar pela atracção do poder e do estatuto que ser político  confere ao francês. Podemos recuar a Sarkozy e à Carla Bruni, outro excelente exemplo de como 10cm a menos na altura não chegam para desmoralizar uma francesa na procura do saucisson de la republique. Exceptuando Sá Carneiro, nenhum político português se aproximou realmente da sofisticação francesa. As esposas dos políticos portugueses parecem saídas do catálogo de uma revista de lavores dos anos 80, tirando o caso da esposa de Cavaco Silva que parece apenas uma mulher da aldeia, toda pintalgada e embonecada para o casamento na meta dos leitões. Sócrates, dizia-se, tinha charme e era bonito, mas não se livrava, talvez por isso mesmo, da insinuação de ser paneleiro. Coincidência ou não, foi estudar para Paris e  não consta que tenha vindo de la com uma Jaqueline qualquer, facto imperdoável para o português que queira mesmo ser cosmopolita e sofisticado. O binómio Manuel Carrilho – Bárbara Guimarães foi talvez a excepção no nosso panorama e viu-se no que deu, era tudo um engano, nem o Carrilho teria poder, nem a Bárbara gostava assim tanto de facas. E assim vamos.

ps: entretanto a Carla alertou-me para a existência desta pérola, nem de propósito e por coincidência, a Julie Gayet aparece num videoclip dos Minor Alps para uma música chamada, muito apropriadamente, Waiting For You, sendo que se imaginarmos que o François é o you, isto tem um efeito deveras cómico.

arte em casa

Não tenho propriamente nada de profundo e interessante como o post abaixo para dizer agora, por isso vou reflectir um pouco no quadro que a minha mãe me deu há uma eternidade e que só o ano passado resolvi emoldurar e pendurar na parede em frente à secretária do meu escritório.
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Como podem ver, são cães a jogar poker. Descobri depois que fazem parte de uma série de 16 quadros de cães a jogar poker do artista C. M. Coolidge em resposta a uma encomenda de um anunciante de charutos. E assim nasce arte. Deu-me isto porque na altura eu estava em pleno apogeu de febre de “vou ser jogador de poker online profissional” e porque ela é obcecada por cães.A paleta cromática do quadro destoa do meu escritório cinzento betão, cinzento metal, branco sujo, amarelo vivo, vermelho oxidado, cores que encontramos em locais de construção e que esteve em voga em interiores modernistas dos anos 50-60

Ao lado tenho este poster emoldurado, escolhido por mim, que acerta em cheio na paleta:

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O livro não é nada de especial, mas a capa é.  O “Lawrence” e o “the man who died” são um piscar de olho ao habitante do escritório.

Portanto, o resultado é qualquer coisa como isto:

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o anel de diamantes

Já não se morre em casa, nem se fica doente em casa, a ciência está sempre a criar tecnologia e curas, por isso quando alguém fica doente com um cancro fatal, a surpresa faz parte da reacção. Não há empregado de escritório que cometa o erro de ler dois livros que não sonhe com qualquer coisa do género ser tratador de golfinhos, espião internacional ou músico. Os empregos são formas geométricas onde encaixam seres humanos para se gerar dinheiro, mas hoje em dia as nossas formas são cada vez mais difusas e complexas, até porque crescemos a ouvir que somos especiais e complexos  e por isso a fila para um casting do ídolos nunca mais acaba. E hoje em dia ouvimos que “temos de fazer aquilo de que gostamos” ou “sem paixão, não se consegue criar nada” o que alimenta sentimentos de culpa ou falhanço adicionais, como se algo nos estivesse a escapar constantemente e a vida nos passasse ao lado, enquanto que antigamente as preocupações materiais ou familiares talvez bastassem, talvez, a alguns claramente nunca bastaram, a julgar pelo que escreveram. As taxas de divórcio disparam, o casamento é um papel, a utopia, desmascarada. Os escapes espirituais como a religião estão em decadência excepto os que têm uma visão utilitária da fé, como as seitas brasileiras em que a vida das pessoas se transforma para melhor na saúde, no dinheiro, no amor, por magia, o misticismo new age dispara. Temos sociedades excedentárias e confortáveis como nunca tivemos, mesmo em tempos de crise, quando comparadas com há 100, 200 anos, temos sociedades muito menos violentas do que há 50 anos, mas o Correio da Manhã diz que não e a pobreza que existe é mais chocante, afecta-nos mais, há reportagens, correntes no facebook, somos mais sensíveis, no tempo do Salazar vivia-se melhor, uma pessoa do campo vivia bem com meia dúzia de tostões porque tinha galinhas e uma horta e não havia bullying, havia uma guerra colonial, não havia praxes, mas serviço militar obrigatório. Um jovem pode estar desempregado até aos 30 vivendo em casa dos pais, não se pense que este jovem é feliz, mas também não se pode dizer que é infeliz como um operário de uma mina de carvão do século XIX ou um soldado numa trincheira. Uma economia de entretenimento, as apps, os smartphones, os jogos, milhões e milhões de cérebros inovadores a desenvolverem mais e melhor entretenimento e tecnologia e comunicação para estarmos mais perto uns dos outros, empresas atingem milhões na bolsa sem sequer gerarem lucro, só pela ideia e o potencial. No World of Warcraft há profissionais que desenvolvem atributos de personagens durante dias a fio e depois vendem as personagens no e-bay por largas centenas ou mesmo milhares de euros. Alguém de fora poderá dizer “isso é ridículo, estão a pagar por algo virtual, a esquecer o mundo real!” E um anel de diamantes, para que serve? Alguma vez serviu para alguma coisa?

harmónica

quando tudo o resto falha e a bebé está com os humores, nada como um pouco de…harmónica!

Eu nem sei tocar harmónica, mas ela não sabe. Fica embasbacada a olhar para mim com um fio de baba a escorrer pelo lábio inferior. Não é que o som da harmónica a encante por aí além, é o choque sónico que a deixa desconcertada. É importante fazer uma dança vagamente reminiscente do velho faroeste enquanto se tocam notas ao acaso na harmónica, não podemos ficar simplesmente parados a tocar. É uma Golden Cup Harmonica e tem gravado MADE IN CHINA no metal. É uma rica harmónica.

Osudy dobrého vojáka Švejka za světové války

svejk

Já começo a sentir melancolia ao ver a espessura do molho de páginas que me falta ler a minguar e o lado que já li a ficar quase do tamanho do livro. Livro que, sendo um calhamaço impressionante, está irreconhecível. A capa desfeita e descolada, com os cantos encarquilhados de andar com ele debaixo do braço no metro, nódoas de molhos diversos, incluindo cozido, nódoas de condensação de copo de cerveja, cantos dobrados, cinza, guardanapos de café a fazer de marcadores quando não quis dobrar os cantos, algum muco de um espirro ou outro… Eu gosto dos meus livros assim depois de os ler, se bem que só livros enormes chegam ao estado deste Bom Soldado Svejk pois são expostos a mais quilometragem. É como com os meus ténis de corrida. Gosto de lhes ver a sola a gastar-se e de lhes pegar e saber que corri centenas de quilómetros com eles, foram meus companheiros de estrada. Um deles até tem uma enorme mancha de sangue oxidado que já não sai e de que me orgulho muito, uma coisa assim não se finge. Sou capaz de fazer uma prateleira lá em casa só para os deixar em exposição quando morrerem, ao lado dos livros, com etiquetas como “Saucony Triumph 10 Maratona de Madrid 2013-2014 -1200 km”.