Nunca fui muito dado a hipersensibilidades dramáticas e com tempo fiquei ainda pior. O meu problema com a poesia vem daí (e talvez os meus sintomas de síndrome de Asperger também). Um poeta, para mim, é um senhor que se queixa de uma maneira bonita e um pouco histérica às vezes. Diz “ai ai ai” mas com palavras elaboradas. A dor de corno transforma-se em coisas como “um pedaço de carne e sangue arrancado de mim” e donzelas suspiram “oh, que sensível, este senhor, gostava tanto de o magoar para ele escrever coisas assim por mim”. Pode ter um furo no pneu do carro que nunca dirá “caralhos me fodam, tenho de chamar o reboque”, depressa terá inspiração: “oh, verteste o teu conteúdo e agora és uma mortalha sem corpo, casulo de borboleta vazio, prepúcio de borracha, engelhado no asfalto negro” etc. Não, eu cá não sou muito dado a isso e com o tempo até fui piorando. Lembro-me que gostei dos livros do António Lobo Antunes (muito mesmo) e hoje sou-lhes completamente impermeável do ponto de vista emocional, sentimental. Acho-os muito bem escritos, mas sinto que algo me escapa. Na música, o mesmo processo. Quando adolescente tinha um prazer algo masoquista em ouvir música que reforçasse o meu estado de espírito miserável, como se a música fosse um paliativo mas ao contrário. Sinto-me incompreendido, o que fazer Doutor? Vou-lhe passar a receita do Creep dos Radiohead, toma 20x ao dia. Não, já não sou assim e cheguei a pensar que tinha quebrado umas coisas cá dentro, pois amadurecer é domesticar partes da adolescência. Por isso fico sempre feliz quando encontro coisas que me dão vontade de chorar. O que mais me comove agora é quando o riso suspende o drama, como quando pessoas falam de alguém próximo que morreu e recordam um episódio engraçado, uma característica cómica dessa pessoa, e riem um pouco e o riso se vai esvaindo numa pausa, num silêncio com reticências, em comentários aleatórios, em observações levianas. Na literatura, lembro-me do conto Perfect Day For The Banana Fish do Sallinger como o clímax absoluto disto de que estou a falar. De resto, é mais comum sentir este sentimento, passe a redundância, na música, em poemas de canções, como algumas do Jonathan Ritchman ou neste lindo cover da being arround dos Lemondheads pela brilhante Courtney Barnett que tem o disco mais giro que ouvi este ano. Gosto muito desta letra. Tem comparações inesperadas e até bastante impróprias (como o verso do “se eu fosse um macaco, assoavas-me do nariz? comias-me? onde é que o punhas?”) que apenas reforçam a trapalhice e inconseguimento (para citar a poetisa Assunção Esteves), mas depois tem outras inesperadamente bonitas e comoventes. Pode cantado por alguém de mãos nos bolsos e a olhar para os pés, é isto.
Being Around by Lemonheads
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If I was the fridge would you open the door?
If I was the grass would you mow your lawn?
If I was your body would you still wear clothes?
If I was a booger would you blow your nose?
Where would you keep it?
Would you eat it?
I’m just trying to give myself a reason
For being around
If I was a front porch swing would you let me hang?
If I was the dance floor would you shake your thang?
If I was a rubber check would you let me bounce
Up and down inside your bank account?
Would you trust me not to break you?
I’m just trying really hard to make you
Notice me being around
If I was a haircut would you wear a hat?
If I was a maid could I clean your flat?
If I was the carpet would you wipe your feet?
In time save me from mud off the street?
If you like me if you love me
Would you get down on your knees and scrub me?
I’m real grubby
From just being around
As unhas da brilhante Courtney Barnett metem nojo aos cães.
Outra coisa: os Bloody Mary ficam uma merda com tomates frescos, têm de ser de lata. Se queres romantizar com a horta podes eventualmente aromatizar/enfeitar com umas folhas tenras de aipo.
Tens razão
Ora então, tens um problema com a poesia mas gostas de um poema porque lhe podes chamar ‘letra’ e porque o gajo que o escreveu não se dizia poeta e era só sensível q.b. e em vez de dizer “ai ai ai” cantava “ai ai ai”. Mas também já não gostas de música miserável e fazes suspeitar que privilegiarias a Whigfield com o “Saturday Night” em detrimento do “Creep” dos Radiohead, porque a primeira não tem qualquer assomo de carga sentimental e a segunda não almeja à redenção que pode advir de uma graçola com burriés. É isto?
bem, dito assim soa incongruente…