Os videojogos foram responsáveis pelo maior choque de gerações entre mim e os meus pais. De todas as atividades lúdicas a que me dedicava, nenhuma causava tanta aversão como o meu vício dos jogos. Digo vício porque de facto teve sempre esses contornos. O meu pai fechava literalmente o escritório dele à chave, o escritório onde dormitavam as sucessivas gerações de computadores (entre outras coisas, ele era programador) e só me deixava jogar tempos cronometrados. Um jogo é uma “experiência”. Eu transportava sempre a experiência do jogo para a minha vida real, ficava imerso. Se jogava um jogo em que era um piloto de naves espaciais em combates épicos, era esse piloto que jantava ou tomava banho ou se deitava exausto depois de mais um dia de guerra, no seu beliche, no sector A34 da nave espacial. Era assim em quase todos os jogos, eu tinha de construir uma personagem fora deles para prolongar a imersão no meu dia a dia. Era uma forma de alienação muito mais poderosa do que a fornecida por outros meios anteriores, como o cinema ou a literatura. Vivi muitas vidas, muitas aventuras. Virtuais, é certo, mas aí eu devolvo a questão de pacotilha: o que é o real? Eu estabeleço as fronteiras do que considero “vida real” à satisfação das necessidades básicas como comida, conforto, liberdade, segurança ou saúde. As necessidades aspiracionais, aquelas que colocaríamos no topo da pirâmide de Maslow, para mim estão quase ao mesmo nível das que são supridas pelos jogos e as fronteiras são difusas. Por exemplo, encarei os blogues em 2003 como um jogo e criei avatares, encarnei a persona de escritor com diferentes personalidades. Conheci pessoas reais que faziam o mesmo. A minha filha é real, mas nasceu daí, da minha namorada que conheci assim, nessa esfera que outros classificariam de virtual. Já discuti amplamente isto: é mais real conhecer alguém numa discoteca, ébrio, e julgá-la só pelo aspecto físico imediato? Na interacção das redes sociais, não se constrói um “ser imaginário”? Não é assim, o amor real ou virtual, sempre? Não é sempre cego? A fama ou a riqueza podem ser caracterizadas como bens reais, mas em que medida são? Ter um Lamborghini. Adorava. Mas um Lamborghini é um brinquedo grande. Só isso. Confere um status social real? Pode conferir para quem ligue a isso, mas em que medida esse status é “real”? Há pessoas que ficam fascinadas com o facto de haver profissionais que desenvolvem personagens em jogos e que as vendem no e-bay ou de haver quem compre moedas virtuais para poder jogar com o Cristiano Ronaldo no fifa 14 (é necessário algo como 200 euros). “É um jogo!” dizem. Grande parte da vida é um jogo. O status de ter o CR7 numa comunidade de milhões de jogadores pode ser comparado a passear um Lamborghini na marginal ao domingo. Que refeição sabe melhor? Aquela carne de porco à alentejana numa tasca que se descobriu, esformeado, perdido algures no sudoeste alentejano e já sem esperança de encontrar um estabelecimento aberto por aquela zona, ou um festim no tavares rico? Todas as experiências são emocionais. Por vezes penso nisso a propósito da escrita. É completamente virtual para o Fernando Pessoa ter sido o Fernando Pessoa. Porque é que pessoas como o Seymour Hoffman dão na droga, se têm sucesso. Por que se matou o Heath Ledger ou o Kurt Cobain? Raramente encontramos o ser realizado que, por ter visto na sua vida real, material, o efeito da sua ocupação (como ser reconhecido em vida, rico, ganho o nóbel, ganho milhões) uma satisfação que fosse para lá da recompensa momentânea e que não deixasse a fome de mais. É comum nas pessoas que não são nada disto interrogar-se sobre por que motivo não se reforma um Bill Gates. Não se reforma porque está a jogar um jogo (bom, agora joga o jogo da filantropia e do desenvolvimento conceptual e estratégico). Os Rolling Stones precisavam mesmo de dar mais concertos? Por que motivo chora o Ronaldo O Fenómeno quando anuncia o fim da carreira? Não é ele rico? Não ganhou milhões a jogar à bola? Por que fica triste no fim? Foi o fim de um jogo. Tenho também a teoria, talvez um pouco rebuscada, que as próprias guerras são potenciadas pelo lado lúdico e aventureiro que proporcionam. Pela adrenalina, pela escolha de uma vida diferente, pela ruptura da normalidade, pela possibilidade de “ser outra pessoa”, do risco, das emoções fortes, de um sistema de recompensas (e castigos) formalmente mais claro e estruturado que o mundo civil. É, aliás, assim que os exércitos recrutam jovens, basta ver os videos publicitários dos vários ramos militares. O perigo, não só nos videojogos, mas em todos produtos de entretenimento (cada vez mais pesados nas economias dos países desenvolvidos) não é o instigarem comportamentos violentos, por exemplo, como tão estupidamente é repetido à exaustão pelos analistas (velhos). O eventual perigo é que de facto podem induzir um estado de indiferença face ao que se move fora da esfera desse entretenimento, como se não existisse mundo exterior, simplesmente porque os sentidos, as preocupações, os desafios relevantes, estão todos condensados num universo relativamente estanque ao que está para lá dele. Pego só num exemplo claro disto: a virtualização do activismo, patente no “like” ou “share” a causas em páginas do facebook como se isso fosse um jogo em que exibimos uma consciência ética no nosso feed, sem exigir qualquer compromisso ou sacrifício pessoal. Podemos pensar que não é diferente da beata que dá a moedinha ao coxo à saída da missa para toda gente no bairro ver, mas ao menos com a moedinha, o coxo podia comer uma sandes de panado.
este post merecia um fim qualquer conclusivo, mas meto o jogo no pause, já vai longo
Este post merece um fim conclusivo, meto o jogo no aplause 🙂
vou escrever mais posts sobre este tema!
É por posts como este que gosto tanto de te ler 🙂
obrigado 🙂
Booom !! 🙂 🙂 🙂 … Matei saudades 🙂