fragmento

14

Abri os olhos e nada de luz a não ser uma linha branca na ombreira da porta, uma luz intermitente de lâmpada cheia de tremeliques de raivinha. Confirmei, às apalpadelas, que era a porta da cela. Confirmei também, de gatas e com o maior cuidado, que está aqui o meu catre, a minha almofada raquítica e a sanita. O Neves veio buscar-me para passear na Gaiola. Uma hora passada numa cegueira branca ao sol. Suponho que fosse meio dia, não tinha sombra a não ser debaixo dos pés. Demorei tanto tempo a adaptar-me à luz que não me adaptei, não tive tempo, algemaram-me e levaram-me dali de volta para aqui para o escuro.

─ Isto é a minha cela? Mudaram-me? ─ perguntei ao Neves, antes da porta fechar.

─ Sempre estiveste aqui ─ disse-me.

─ Há quanto tempo estou aqui?

─ Há duas semanas.

Estou, ao que tudo indica, num regime de privação de luz de que me falaram na ala comum. Antes tinha luz, posso garantir. Fossem dar uma volta ao bilhar grande. Raios os partam. Olha, fodam-se, pronto, fica assim escrito. Deito-me na cama o dia todo, tenho medo de andar por aqui pelo quarto a tropeçar nas paredes que de repente me são estranhas. Olho na direcção oposta à da porta e tento visualizar a janela que antes estava ali, onde me apareciam os animais do bosque. Só vejo um negro absoluto, infinito, espesso. Nunca vi nada tão negro e vazio, é como um céu estrelado sem estrelas. Um dia o céu será assim para todos, as estrelas explodem ou colapsam, apagam-se, ficam frias, perdem-se, chocam umas com as outras, são engolidas por buracos negros… no longo prazo é perigoso ser estrela. Há sempre uma merda qualquer. Estou a ver o futuro, o meu e o vosso futuro. Estico a mão para este véu negro e a minha mão, invisível, não toca em nada. Só posso imaginar o meu corpo, mas as suas dimensões tornam-se infinitamente grandes ou microscópicas e é indiferente. O meu braço tanto pode ter mil anos de luz de comprimento como um milímetro. Não sei. Tento tocar no nariz com o indicador, logo à primeira. Falho e meto o dedo no olho. Arde-me. Faço chichi de pé, depois de apalpar bem a sanita e certificar-me que oiço o ruído do chichi a cair na água, para ter a certeza de não me mijar o tampo todo ou deixar uma poça no chão. Passo as mãos pela parede do lado da cama e sinto as frases escavadas, confirmo que é a minha cela. Destruam sem piedade as cidades veneradas. Dois homens olharam pelas janelas, um viu grades e o outro o céu, haja alguma verdade, uma referência, isto é real. Apalpo a parede que deveria ter a janela e confirmo que não está lá, nem uma alteração de textura, apenas betão liso e húmido, uniforme, com a tinta a escamar, com o aspecto de estar assim desde sempre. Terei sonhado com a janela?

Seria muito positivo poder fazer um relato objectivo da minha situação e lamento, mais do que qualquer outra pessoa, ser tão incoerente em detalhes tão simples. Quase que me dá vontade de fazer eco da escuridão e calar-me, desaparecer, já que nada do que digo parece ser fiável. Mas não o faço. O meu compromisso é com a Verdade e a Verdade é esta, pelo menos por enquanto.

O tempo passa, uma hora parece um mês, no escuro, nem consigo ver cores quando fecho os olhos e tento imaginá-las, aparece-me tudo a preto e branco. Grito, alto. O Neves, suponho que seja o Neves, bate com o bastão na porta e manda-me calar. Sempre quebra a rotina. Grito de novo, isto é como um jogo. Desta vez entra o Neves, muito prestável, a luz acende-se quebrando o protocolo, pisco os olhos, depois tungas, bastão na cabeça, nas costas, na cabeça outra vez e eu calo-me. A luz apaga-se para me deixarem confortável a reflectir no que sucedeu. Não tenho sono nenhum, raios, isto é pouco relaxante… levar com bastões…Podia-me ter batido até eu desmaiar. Hesito em chamar o Neves outra vez.

7 thoughts on “fragmento

      1. A palavra existe e podes usá-la. Mas queres mesmo? Deves? Qual a função do diminutivo? Pertence ao mesmo registo do resto do texto? É uma idiossincrasia justificada? Está integrada no texto ou caiu ali de pára-quedas? Fortalece ou enfraquece o texto? Acrescenta alguma coisa sobre o narrador? Todas as palavras têm uma função. Essa raivinha é uma nódoa de papa num casaco de cabedal.

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