madrid que bien resistes

Faço desde já um aviso prévio: este texto contém linguagem grosseira e abusiva. Agora que captei a vossa atenção, quero anunciar que fiz a puta da maratona em 3 horas, 58 minutos e 26 segundos. E que o meu pensamento recorrente nos últimos 10km foi um grande e enorme DESISTE a escorrer vermelho sangue, gritado pelo meu corpo todo, por todas as suas moléculas e átomos. À minha volta eles caíam que nem tordos. Os últimos 8 km foram uma longa subida da qual só recordo ténis e asfalto, pois evitava olhar em frente e ver aquela merda que NUNCA mais acabava. Quando passei a meta, cambaleei, deram-me uma medalha que me pesou uma tonelada no pescoço, um saquinho com merdas para comer e beber, agarrei 2 garrafas de água e comecei a cambalear em direção a sombras que não havia. Por todo lado, pessoal esticado no chão, com esgares de dor. Eu vim no “pelotão das 4 horas”, vinha rodeado de pessoas que meteram na cabeça bater as 4. Há um pelotão das 3:30, 3:00, 4:30 etc. Desistir de tentar chegar ao jardim, não conseguia andar mais, umas dores absurdas nos pés, nos tornozelos, nas canelas, da merda do impacto das intermináveis descidas a pique. Fiquei no chão entre 2 caixotes do lixo e 4 corredores zombie, ao pé de um gradeamento onde familiares e amigos dos corredores, do outro lado, aguardavam pelos seus. Não conseguia abrir a tampa da garrafa de água. Uma mão ajudou-me, deu-me uma palmada no ombro. Bebi a garrafa. Depois uma de isotónica. Depois, bebi a outra. Tentei comer, não conseguia. Deitei-me de costas e vi as folhas dos plátanos contra o céu azul e chorei um bocadinho. Depois levantei-me e fui a andar e passado um bocado chorei mais uma vez, mas tudo bem, tinha os óculos escuros de correr próprios para isso. Estendi-me na relva. Levantei-me outra vez, estava com frio, apesar do sol glorioso. Corri mais de 42km em menos de 4 horas, mas demorei quase uma hora a conseguir fazer os 2.2km a andar até ao hotel. O parque, lindo, cheio de sol e pessoas. Chorei mais um bocadinho. Nos últimos 5km sei que uma coisa qualquer se partiu na minha cabeça e já nem sabia quem é que eu era. Estava muito feliz. Vi crianças e chorei mais um bocadito, lembrei-me da minha filha. Ena pá, um maratonista fica lamechas. O desafio era muito grande, mas duas coisas correram mal e surpreenderam-me pela negativa. A primeira foi começar a perceber que o meu relógio estava a ser optimista demais nos quilómetros que registava. Eu passava pela marca dos 7km e ele mostrava-me 7km e 200 metros. Eu ia atrás das duas lebres oficiais das 4 horas que tinham uns enormes balões azuis a dizer “4 HORAS” e, apesar do meu relógio dizer que supostamente eu já ia 1 ou 2 minutos à frente do ritmo alvo para as 4 horas, sempre a 5:20-5:30 por km, abaixo dos 5:41 alvo, eu continuava a ver os cabrões dos balões azuis a afastar-se no horizonte. Impossível. Ou eles iam depressa demais (e cheguei a chamá-los de filhos da puta irresponsáveis várias vezes na minha cabeça) ou então eu não ia tão depressa como pensava. Ao quilómetro 10 convenci-me do erro do meu gps. Tinha de seguir os balões azuis e mais nada. Eu sabia que eles tinham partido na meta e eu tinha passado pela mesma 1 minuto e pouco depois e só a partir daí contava o meu tempo de chip. Ou seja, sabia que se estivesse encostado a eles, mesmo que 30 metros atrás, eu batia as 4 horas por um minuto pelo menos. Mas aqui entra o problema número 2. As puta madre das subidas desta puta madre coño de cidade. Foram 400 metros de elevação total, para se ter uma ideia, são 100 metros a mais que Monsanto. É o mesmo que ir do rio tejo ao saldanha umas 3x e tal. Aqui não se batem recordes do mundo. Quem pensa “ah, mas depois das subidas podes descer mais rápido”. Era bom, se não fosse o facto das descidas se fazerem rápido serem antecedidas de subidas onde o nosso ritmo cardíaco ameaça disparar se tentarmos seguir um filho da puta de balão azul com 4 horas marcado e se na descida não quisermos recuperar da subida anterior até levarmos com a próxima logo a seguir. Tentei mentalizar-me que tinha corrido muito em subida, que os meus treinos envolveram várias vezes a Calçada de Carriche, Monsanto, subir e descer até ao rio, se eu tivesse treinado 100% em plano e à beira do Tejo, estava fodido logo no plano psicológico aos 20km. Assim foi só aos 30km. Eu tinha dito para comigo que podia desistir de tentar as 4 horas se visse que não dava e relaxar o ritmo e ser uma pessoa feliz. O problema é que não dava e quanto mais próximo da meta, mais eu percebi que não dava para abrandar. Abrandar seria desistir logo ali. Seria impossível, já não tinha retorno se cedesse nem que fosse 1 só um bocadinho ao bom senso, o bom senso tomaria conta de mim e eu saía da pista. Tentei pensar no que disse o Murakami, que uma vez a correr imaginou que era um robot e que ele não tinha sentimentos, era uma máquina e conseguiu superar a dor. Tentei um pouco, não consegui e com isto decidi nunca comprar um livro do Murakami e ainda o chamei de filho de puta e até foi alto e bom som. O espanhol ao meu lado pensou que eu estava a criticar o percurso, a subida e disse algo como joder, puta madre também para eu me sentir bem. Então como consegui? Bem ajudou ter um gajo vestido de vaca ao meu lado uns 10km. Não foi uma alucinação, ele ia com um fato completo de vaca, incluindo cabeça e cornos. Uma aposta perdida? Nunca o saberei. O certo se ele não morreu de golpe de calor, até ia bem e se ele ia bem vestido de vaca, quem sou eu para me queixar? Também vi um punk vestido com um spandex de padrão chita. Mas esse ficou para trás. Penso que foi pelo apoio do público. Epá, eu nunca vi nada assim. Foi uma loucura o tempo praticamente todo, público a aplaudir, a gritar, a incentivar, por vezes tínhamos de passar em zonas com estrada mais estreita e as pessoas comprimiam-se para nos gritar “campeones!” e “sois muy guapos chicos!” e “falta poco, estay quase”, se bem que para o fim este “falta pouco” começou a ser retribuído pela minha mente com um “falta pouco o caralho”. Também havia bandas rock de xis em xis km a tocar rock bem alto até ao km 25 em que se lembraram de meter uns paneleiros com violencelo e gitarrinhas a tocar baladas e eu estive para lhes atirar com um pacote de gel energético. O malta ali queria era rock, foda-se. Depois voltou ao rock normal, mas começou a fazer demasiado calor e as bandas foram-se embora porque é sabido que o pessoal do rock se transforma em cinza se apanhar sol. Por falar em gel, durante a prova comi os meus 8 geis, mais 2 da organização, um deles com sabor a vómito: era salgado e ácido. Pensei ” se vomitar fico mais leve!” e comi-o, mas não vomitei. Copos de powerade, bananas… de acordo com o relógio e o monitor cardíaco, perdi 4200 calorias. Também perdi sal. Fiquei com a cara branca de sal seco e não era o único. Ao tomar banho o sal dissolveu-se e escorreu-se-me até às virilhas onde me avisou que estas estavam extremamente assadas. Uma pessoa pensa que o sofrimento acaba na meta, mas não. E por falar em meta, quando ainda faltava 1km eu pensei que aquela meta era a última e não, não era. Como imaginam, foi uma situação difícil de gerir. Depois vi outra e pensei que fosse essa. Mas não, não era. Os cabrões dos espanhóis meteram umas 4 ou 5 metas no último km, suponho que cada uma a simbolizar 200m e a cada uma eu pensava “FODASSE ESTA MERDA NUNCA MAIS ACABA ARRRRGHGHHHHH!” Foi estranho, a certa altura tenho a certeza que entrei num transe maluco. Se no início tive aquele stress com o relógio e as lebres dos balões das 4 horas, depressa entrei em modo prazer e a coisa estava mesmo a correr bem até quase aos 30km, senti-me eufórico, feliz, Madrid que bien resistes, linda, as pessoas simpáticas aos gritos, crianças a darem hi-5 aos corredores, crianças que eu ignorei até os 30km mas que depois dali para frente até retribuí ou um ou outro hi-5 porque fiquei supersticioso e achei que me podiam dar bom karma. Óbvio que se soubesse o que sei hoje, não me tinha inscrito nisto, nem na ultra de setembro. A bem dizer, acho que nunca mais corria maratonas. Eu não recomendo a ninguém a não ser que seja por prazer, para terminar num ritmo confortável. Mas quando ia para casa, a arrastar-me ,com a minha medalha, em direção ao hotel, passei pelo percurso e vi pessoas que ainda tentavam completar a maratona. Algumas a andar, subidas acima, alguns idosos, algumas mulheres… já não havia quase ninguém a apoiar, já se tinham passado mais de 5 horas. E eu claro, tive vontade de chorar, eles não desistiam.

6 thoughts on “madrid que bien resistes

  1. Também chorei um bocadinho 🙂 É fenomenal a forma como transmitiste o que se passou. E agora o meu sonho passou a ser correr uma maratona… vou ali a ver se passa e já volto.

  2. Comecei a mexer-me há um mês e só agora começam melhorar as dores nos pés. E só ando/ando depressa entre 5 a 6km. Acho que, se alguma vez entrasse num esquema desses, pés, tornozelos e pernas se desfariam por completo. Parabéns 🙂

  3. O sentimento de cruzar a meta é bem capaz de valer o esforço todo. É um cliché mas é verdade. E o ser humano tem uma capacidade incrível de se esquecer da dor, só isso pode explicar os repetentes das maratonas e provas afins de endurance. Muitos parabéns pela maratona e obrigada pelo relato completo!

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