futuro

Li um dia que a ficção científica (o género literário) se caracterizava por se explorar uma premissa disruptiva (a expressão usada foi “game changer”), normalmente tecnológica, mas sempre com uma base plausível, evitando o fantástico. Assim, o 2001 do Arthur C. Clarke tem a premissa “e se homem desenvolvesse uma inteligência artifical com consciência de si e medo da morte”, o George Orwell imagina um mundo em que não temos privacidade e tudo é vigiado pelo big brother, no Minority Report de Philip K. Dick a premissa é “e se o homem pudesse prever crimes e prender as pessoas antes delas os cometerem” mas a existência de precogs é justificada por avanços genéticos e investigação na ciência paranormal etc. Não podemos incluir Saramago neste lote de autores das premissas, pois as suas sempre foram declaradamente metafóricas e fantásticas. Ele não explica a cegueira colectiva da humanidade no Ensaio Sobre a Cegueira ou como sucede que a península ibérica comece a flutuar oceano abaixo.

A questão é se essa explicação reduz o leque de potenciais interessados, se fecharia o âmbito da história. Olhando para as prateleiras e para cultura popular actual, penso que é notório que o género fantástico puro tem mais adesão que a ficção científica, seja o Game of Trones, Tolkien voltar à moda, Harry Potter etc. Mesmo a Guerra das Estrelas está mais no campo do fantástico do que de ficção científica: existência de Princesas, Impérios, Rebeldes, sabres laser e cavaleiros jedis que usam a força. Inclusive, passa-se “há muito muito tempo atrás” e não no futuro. Dá a sensação que a ficção científica é um género de nicho, salve excepções como George Orwell ou, no passado, Jules Verne.

E hoje em dia? Hoje a tecnologia é tão complexa que para nós funciona um pouco como magia. Um iPad é pouco mais que uma superfície de vidro com que interagimos com os dedos, com o toque. Como funciona, é um pouco irreal, poderíamos abrir aquilo e só veríamos microchips de silica e cristais de lcd. Antigamente a tecnologia era mais compreensível. Pensemos num moinho de vento, certamente um avanço tecnológico na época. Ou mesmo na locomotiva a vapor. Podíamos olhar para a máquina e entender a sua lógica. Talvez a se tenha perdido a fé e o optimismo no progresso tecnológico. Na jet age dos anos 50, até os automóveis eram feitos com formas reminiscentes de foguetões e de aviões a jacto. Imaginava-se um futuro radioso de carros a jacto, como nos Jetsons, os desenhos animados. Na aurora nuclear imaginava-se que esta tecnologia resolveria todos os problemas, fazendo parte de todos os lares. Hoje associamos o progresso tecnológico a destruição do planeta ou a sofrimento, nosso ou de animais abatidos para alimentação. A humanidade (a elite) carrega um sentimento de culpa e mesmo toda a comunicação nos lembra constantemente isto, até um festival de rock tem uma classificação de pegada de carbono.

Um sinal da perda de foco nesta utopia tecnológica é o facto do homem não ir à lua há mais de 40 anos. Ou das previsões tão próximas, como o 2001 de Arthur C. Clarke ou a série Espaço 1984 terem errado tão grosseiramente no optimismo do progresso da exploração espacial e sofisticação que atingiríamos nesse horizonte próximo. De facto, as tecnologias fundamentais não parecem ainda ter mudado muito. Um motor de combustão é um motor de combustão. Um carro é um carro, um avião continua a ser um avião. Muda a sofisticação, a velocidade, o conforto, mas a essência é a mesma. Não se resolveram os problemas da exploração espacial dos anos 60, continua a ser caríssimo e complexo colocar pessoas no espaço, talvez mais caro do que antes. Compare-se isto com a progressão do digital, em que houve exactamente as expectativas opostas: nunca se imaginou chegar a este estado em que gigas infinitos de informação são acessíveis num estalar de dedos por uma rede mundial a que se pode aceder em qualquer ponto do globo (em breve, com os drones da Google) e uma economia de coisas gratuitas. É um progresso que levanta muitas questões. Discutia com um amigo há tempos se não estávamos a progredir numa economia de ar e de se isso não se nota nos números que demonstram um impacto diluído do digital no aumento da produtividade e numa desaceleração desta nas sociedades ocidentais que, dizia-se, iam estar sempre à frente das orientais e sul americanas porque eram mais produtivas e avançadas e fariam mais com os mesmos recursos. Quer dizer, ter cabeças geniais a pensar em como podemos ver filmes HD num relógio de pulso que os projecta numa parede pode ser interessante, ou ter um iPad tão fininho que dê para picar cebola, mas o que aconteceria se os recursos fossem focados noutro tipo de progresso, por exemplo, a vida nas cidades, a arquitectura: como fazer casas mais seguras, mais confortáveis e mais baratas? Ou curar o cancro? Existe mesmo uma questão de fundo aqui e não mordo o argumento liberal neste ponto, de que o mercado tem sempre razão. Este texto não tem exactamente um objectivo, era só isto, muito obrigado por esta pequena conversa.

6 thoughts on “futuro

  1. Principalmente o combustível. Chegámos a um ponto em que a guerra do petróleo não faz sentido, mas é a única realidade. Eu não acredito que não se conheçam alternativas ao petróleo, o Galactus da terra, acredito sim é que existem interesses que não lhes dão viabilidade.
    E a Série era Espaço 1999, a não ser que a intenção fosse pôr Orwell na lua à deriva.
    Beijinho.

  2. O facto de se ter deixado de gastar milhões de dólares em idas à Lua, não significa que estejam “parados”.

    Uma das minhas costelas geek, faz-me estar sempre atento a diversas cenas, sendo que uma delas é esta:

    http://ntrs.nasa.gov/search.jsp?R=20140005831

    Click to access 20110023492.pdf

    Mas já se sabe que quem conta um conto…
    http://io9.com/5963263/how-nasa-will-build-its-very-first-warp-drive

    A fusão nuclear só tem 72 anos. A nossa vida é que é curta. Quando quero entrar a fundo na coisa, vou ler as opiniões do Jacque Fresco. As tecnologias sustentáveis dele em relação a todos os sistemas necessários para o futuro funcionamento de cidades futuras, deixa-me sempre a costela geek a sonhar.

    Se calhar já estás farto de ouvir falar nele. 🙂
    http://www.thevenusproject.com/

    1. Sim, sei que não estão parados, mas não se compara a fatia de orçamento que tinham e a prioridade estratégica que tinham, pelo menos até ao Reagan e o programa da Guerra das Estrelas. Epá, estou ver os teus links. Curioso o cities in the seas do Jaque Fresco, está relacionado com o que estou a escrever agora… só que eu acho que não vão ter aquele aspecto clean e futurista. No meu entender as cidades oceânicas vão ser modulares e caóticas como Tóquio ou Hong Kong. Promotores, empresas etc ,constroem módulos e eles vão adicionando como se fossem peças de lego, no fim pode haver bairros high tech e premium como esses designs, mas também zonas (eventualmente subaquáticas) para a população mais pobrezinha (como acontece nos navios de cruzeiro em que um quarto sem vista custa muito menos) Vou ver o resto! Também adoro estas coisas.

  3. Frank Furedi, “The Culture of Fear” – traçou o mesmo diagnóstico que tu (mas mais profundo, é um livro) nos anos 90. A especialização serve uns intentos e descura outros, digo eu: deixamos de ter a figura de sincretismo a que em tempos se chamava ‘inventor’. Agora temos muito quem inove mas temos pouco quem invente. Se isso é bom ou é mau, logo se verá.

    Contares o George Orwel como autor de ficção científica é uma aleivosia das grandes.

  4. Impressionante como este post diz tanto acerca das minhas preferências literárias e mesmo dos meus sonhos (daqueles enquanto durmo): se não é plausível, simplesmente não lhe dou audiência.

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