entrevista a Gene Wolfe

gene

O homem em pessoa também dá mindtrips.

 

LM: And since a lot of your work seems to deal with the nature of human perception itself—the difficulties of understanding what is going on around us—a straightforward approach would be inappropriate.

Wolfe: It’s the hackneyed notion: “The medium is the message.” As I work on a story, the subject matter often seems to become an appropriate means of telling it—the thing bites its tail, in a way—because subject and form aren’t reducible to a simple “this or that.” “That” and “this” are interacting throughout the story. That’s what I meant when I said I’m trying to show the way things really seem to me—my experience is that subjects and methods are always interacting in our daily lives. That’s realism, that’s the way things really are. It’s the other thing—the matter of fact assumption found in most fiction that the author and characters perceive everything around them clearly and objectively—that is unreal. I mean, you sit there and you think you’re seeing me and I sit here thinking I’m seeing you; but what we’re really reacting to are light patterns that have stimulated certain nerve endings in the retinas of our eyes—light patterns that are reflected from us. It’s this peculiar process of interaction between light waves, our retinas, and our brains that I call “seeing you” and you call “seeing me.” But change the mechanism in my eyes, change the nature of the light, and “you” and “me” become entirely different as far as we’re concerned. You think you’re hearing me directly at this moment but you’re actually hearing everything a little bit after I’ve said it because it requires a finite but measurable amount of time for my voice to reach you. Fiction that doesn’t acknowledge these sorts of interactions simply isn’t “realistic” in any sense I’d use that term.

(…)

LM: You exhibit not only a near encyclopedic knowledge of words and their origins but you obviously have a great feel for language and for inventing contexts in which different lingoes can be presented. And yet one theme which recurs in many of your works (and throughout The Book of the New Sun) is the limitations of words, the way language distorts perception and is used to manipulate others. Is this a paradox—or an occupational hazard?

Wolfe: Any writer who tries to press against the limits of prose, who’s trying to write something genuinely different from what’s come before, is constantly aware of these paradoxes about language’s power and its limitations. Because language is your medium, you become aware of the extent to which language controls and directs our thinking, the extent that we’re manipulated by words—and yet the extent to which words necessarily limit our attention and hence misrepresent the world around us. Orwell dealt with all this in 1984 much better than I’ve been able to when he said, in effect: Let me control the language and I will control peoples’ thoughts. Back in the 1930s the Japanese used to have actual “Thought Police,” who would come around and say to people, “What do you think about our expedition to China?” or something like that. And if they didn’t like what you replied, they’d put you under arrest. What Orwell was driving at, though, goes beyond that kind of obvious control mechanism; he was implying that if he could control the language, then he could make it so that you couldn’t even think about anything he didn’t want you to think about. My view is that this isn’t wholly true. One of the dumber things you see in the comic books occasionally is where, say, Spider Man falls off a building, looks down and sees a flag pole, and thinks to himself, “If I can just grab that flagpole, I’ll be okay.” Now nobody in those circumstances would actually be doing that—if you’re falling off a building, you don’t put that kind of thought into words, even though you’re somehow consciously aware of needing to grab that flagpole. You are thinking below the threshold of language, which suggests there is a pre verbal, sub level of thinking taking place without words. Orwell didn’t deal with this sub level of thinking, but the accuracy of his insights about the way authorities can manipulate people through words is evident in the world around us.

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LM: This issue of memory is central to a lot of your work—Peace, The Fifth Head of Cerberus, each book of The Book of the New Sun, and a lot of your stories. Can you say anything about why you return to it so often?

Wolfe: Memory is all we have. The present is a knife’s edge, and the future doesn’t really exist (that’s why SF writers can set all these strange stories there, because it’s no place, it hasn’t come into being). So memory’s ability to reconnect us with the past, or some version of the past, is all we have. I’m including racial memory and instinct here (“instinct” is really just a form of racial memory). The baby bird holds onto the branch because of the racial memory of hundreds of generations of birds who have fallen off. Little kids always seem to know there are terrible things out there in the dark which might eat you, and that’s undoubtedly because of hundreds and hundreds of little kids who were living in caves when there were terrible things lurking out there in the dark. This whole business about memory is very complicated because we not only remember events but we can also recall earlier memories. I allude to this in The Book of the New Sun when I make the point that Severian not only remembers what’s happened but he remembers how he used to remember—so he can see the difference between the way he used to remember things and the way he remembers them now.

entrevista completa aqui

influências, influências

Ontem tive uma leitura épica, não há dúvida, metido em esplanadas de bares animados, exposto ao vento húmido do mar, de capuz enfiado até às orelhas. Cheguei a sentir-me tão transportado para o universo do Book of The New Sun que toda a minha envolvência parecia uma extensão da história. Senti-me tão bem nesse, neste, universo, que quando cheguei a casa até pensei que tinha coerência para escrever um texto, apesar dos 3 ou 4 bushmills (mal servidos, diga-se). Borges é reconhecido como a grande influência de Wolfe para o Book of The New Sun, uma influência que não sou capaz de reconhecer pelo meu parco domínio da obra de Borges. Eu vejo duas outras grandes influências. O que são influências? Se calhar Gene Wolfe nunca leu Boris Vian. Duvido que não tenha lido Kafka. Não estará tudo ligado? Aposto que se googlar bem, encontro algures que Kafka influenciou Borges e que o Vian foi influenciado por todos e nunca influenciou ninguém a não ser eu próprio quando escrevia crónicas da família sem metáforas. E se calhar foram todos influenciados por Homero e Shakespeare. E Cervantes. Mas aqui no Book of The New Sun há dois aspectos que me saltaram à vista e se conjugaram com o meu conhecimento e a minha experiência literária. Porque, o que é experiência? É co-nhe-ci-men-to. Jorge Jesus sabe e sabe que Paulo Rego vê a senhora a chorari enquanto que para o néscio o quadro é apenas um gatafunho. Eu vejo a senhora a chorari. Primeira ligação com Kafka, a mais relevante, é o espaço físico da cidade de Nessus conter distâncias que podem ser, narrativamente, infinitas, como num pesadelo estranho. Severian está no ponto A e quer ir para o ponto B, mas nunca lá chega, porque é desviado para C, D e E ou fica simplesmente retido, à maneira do Castelo de Kafka. A cidade de Nessus tem uma muralha enorme e são proibidos edifícios na proximidade da mesma. A muralha é tão grande que no horizonte, Severian a confunde com as nuvens negras de uma tempestade que avança. Os episódios sucedem-se e estão ligados a personagens e cada parte é uma espécie de conto, os capítulos têm normalmente o nome da personagem mais relevante ou de uma parte da cidade. Enquanto que numa obra como o Dune de Frank Herbert (refiro-a porque foi o livro que li antes) tudo está interligado e faz parte de um edifício complexo e piramidal, em Wolfe há uma liberdade e linearidade própria das histórias infantis. Tudo se sucede e apaga para dar lugar à próxima situação depois da próxima curva. O mundo é geralmente hostil e contém armadilhas, duplos sentidos, traições. Há uma opacidade burocrática e o grande líder, o Autarch, é tão misterioso e distante como um Deus. As suas decisões são completamente imprevisíveis e aleatórias. Severian é um produto deste sistema, pertence a uma guilda de Torturadores que vive numa parte velha da cidade e para o cidadão comum, a sua existência é lendária e não algo real, mas mesmo Severian acaba por não se encaixar no papel da sua guilda. O mundo está cheio de rituais, de leis estranhas, cruéis. Quanto a Vian, concretamente o Espuma dos Dias, a semelhança vem das poderosíssimas metáforas e da liberdade na construção do universo. Mas se em Vian isso é encarado como uma liberdade poética, digamos assim, surreal, em Wolfe é realista. O futuro, muito depois da antiguidade em que vivemos agora, é como uma idade das trevas medieval, mas polvilhada de uma magia, com base científica. Assim, é possível viajar no tempo e entre estrelas apenas com o alinhar de espelhos numa torre e vemos uma espécie de mago explicar a teoria da relatividade de Einstein versão magia. É possível a existência de jardins temáticos que estão encantados por um feitiço que por vezes fixa um visitante ao próprio jardim para ele servir de atracção aos próximos visitantes. É possível a existência de um lago de águas castanhas que conserva os mortos eternamente e de um barqueiro que os repesca. Talvez tenha vindo daqui a minha ligação com Vian e o nenúfar. Um duelo à morte é travado com recurso a plantas venenosas das quais retiram as folhas que são atiradas como facas. As plantas são colhidas na proximidade deste lago que mais não é que a cratera de um vulcão extinto. E há homens verdes que são verdes porque têm algas no sangue e só precisam de sol para sobreviver e fazer crescer as alguinhas. E fico-me por aqui.

venham comigo

Estou no Febras, Baleal, Peniche, peço um Kopke reserva para acompanhar a costeleta de novilho. Mais do que os pedaços de gordura suculenta da costeleta, devoro o Shadow & Claw de Gene Wolfe. A sua escrita transporta-me para fora dali. Faço sinal: “mais um bushmills, duas pedras de gelo”. Estou mergulhado no seu universo fantástico e ao 2º bushmils após 1 garrafa de kopke, nada me parece real. Decido levar a sensação ao extremo. Vou para o mar, de havianas novas que comprei. Os meus pés enterram-se na areia húmida. Vejo o mar apesar da lua nova, ténues reflexos da luzes da estrada e do bar do bruno. Continuo até pisar areia lisa, dura e molhada. Vejo a via láctea por cima de mim e a espuma das ondas ,todo o seu clamor, a envolver o meu campo de visão. Sinto-me no planetário. Está tão escuro que não vejo os meus pés e o chão, o que apenas faz parecer mais real a ilusão de estar a flutuar num sonho. Vejo um bar à beira mar e caminho para lá, com o capuz metido na cabeça. Entro, subindo as escadas, vindo da praia. Ninguém repara. Peço um uisque e sento-me numa mesa cá fora, com boa luz. Há uma americana com focinho de raposa a contar uma história lenta a dois rapazes portugueses. Eles ouvem, fingem-se interessados e preocupados. Concentro-me no livro. À minha direita, três estrangeiras, provavelmente alemãs, brincam com os smartphones. Peço mais um bushmils, sento-me, leio. Estou tão mergulhado na história que mesmo que alguém tivesse estilhaçado as muralhas do meu mundo, eu teria apenas olhado com pasmo, com um “deixem-me em paz”. Depois deram slides das férias dos campos de surf. Aqui, fiquei parado a observar. Eram fotos, projectadas num ecrã gigante, de um dos muitos surfcamps de PEniche. Na plateia, constituída integralmente por estrangeiros, na maioria alemães e ingleses, muitos risos e palmas aquando de uma foto de alguém mas preponderante no grupo a cair de chofre nas ondas. Risos e mais risos. Sai ao 3º whisky e caminhei junto ao mar, os meus pés na areia molhada. Lembrei-me do meu pai, da minha mãe, nesta mesma areia, dos meus cães soltos a correr sprints ilógiciso em todas as direcções, como se obrigados a tal pelo espaço vazio. As pedras na areia da maré vazia, pedras que estariam debaixo de água e das ondas dentro de umas horas. Fiz-lhes uma festa. Um carro parou num promontório, máximos acesos a iluminar a espuma branca das ondas. Eu, recortado pelos faróis, encapuzado, devia-lhes parecer exactamente o que eu sou, tanto que desligaram as luzes quando me aproximei do carro.

jim parsons e o big bang theory

Ainda não vi o Derek em que entra Ricky Gervais, mas o Big Bang Theory conheço de espreitar uns episódios e sentir algumas náuseas, o efeito que me dá o humor feito de clichés previsíveis em que se adivinha a punchline de cada diálogo e o público com o riso enlatado, a tenta forçar. Há uma coisa chamada Emmys, o Ricky e o Jim Parsons foram nomeados e ganhou o Jim Parsons, um actor muito bom, mas menor comparado com o Rick Gervais. Não posso dizer que é injusto não ter ganho o Ricky Gervais pois ainda não conheço o Derek e sei que ele tem altos e baixos próprios de quem tenta arriscar e inovar a cada novo projecto. Também não discuto que Jim Parsons é um excelente actor naquele papel, o que me deixa um pouco perplexo é a popularidade e aparente praise crítico do próprio Big Bang Theory. É para mim um mistério quase tão grande como o do Seinfeld. O Seinfeld ainda tem agumas atenuantes. Apesar de existirem séries contemporâneas e mesmo muito mais antigas que estavam noutro patamar mais avançado, a verdade é que o formato do Seinfeld era clássico, próprio do mainstream e estava bem escrito. Dava uma sensação de densidade por ter não uma, mas várias personagens interessantes (sendo o grande maluco Kramer a mais aborrecida para mim). Já o Big Bang Theory parece completamente anacrónico, como o para mim doloroso How I Met Your Mother. Até o tema do geek é batido e simplório. Eu sou semi-geek por vários padrões e conheço vários geeks e os geeks naõ são assim tão óbvios. Aquilo – e sigam-me por favor – é tão simplório como seria racista uma série em que retrassem negros daquela forma. Se o Prince de Bel Air fosse como o Big Bang Theory, então o Will Smith para além das macacadas, roubaria pessoas e traficaria droga. Falei no How I met YOur Mother. Ambas têm a personagem que é “um grande maluco” e que tem tiradas que são escritas como quem enche chouriço. As séries orbitam em torno de uma personagem que, fruto do talento do actor e da subsequente concentração dos argumentistas a mando dos produtores, acaba por sorver tudo em sua volta. O público ri por reflexo pavloviano. Já espera que ele diga aquilo ou faça aquela cara e ri de antecipação. É curioso que Ricky Gervais no excelente Extras, ironize com uma dimensão paralela altamente realista em que Ricky cede aos produtores e ao gosto do público e faz uma série cómica mainstream, daquelas com cenário, público com risos enlatados e onde ele próprio desempenha o papel de grande cromo cuja mera entrada em cena arranca gargalhadas e que tem tiques e trejeitos cómicos. Gosto cada vez mais do Ricky e do humor inglês, ‘do Sul’. Em todo o caso, a ideia que tenho dos Emmys é de serem uns prémios de merda, estilo óscares. Ligo aos Bafta por exemplo e ainda ao grande prémio do juri de Cannes (isto no cinema). E terminando o meu rant sobre prémios, aprendi a desconfiar fortemente do Sundance Film Festival, já vi demasiada porcaria hipster com o selo deles. Sobre o urso de Berlim, não tenho opinião.

The Book Of The New Sun – Gene Wolfe

Mais ou menos a meio da primeira metade do Book of The New Sun de Gene Wolfe, concluo que é até agora o melhor livro que li desta leva de ficção científica. Não gosto sequer do termo ficção científica aplicado a este livro, visto que – por enquanto – de ficção científica tem apenas o presumível avançado do tempo em que a acção se passa. É inclassificável. Acho que até agora o único traço cronológico que pude perceber acontece quando, após uma descrição fugaz de uma lua verde uns capítulos antes, o protagonista contempla um quadro antigo num museu e no quadro a lua é prateada. O curador, um velho cego com uma barba até ao chão, explica ao jovem protagonista que antes da irrigação da lua que a tornou verde, a lua tinha aquela cor. E isto foi basicamente a única pista de que se trata de futuro. A escrita de Gene Wolfe coloca este livro, a meu ver, numa dimensão à parte e a puxa para fora de um género em que, tendo em conta as expectativas normais, exige apenas uma escrita competente e sóbria. E se falo de género é porque foi pelo género que o descobri, está em várias listas de “10 best sci-fi novels of all times”.
shadow
Um pormenor que aqui me aparece muito relevante e que posso transpôr para a ficção científica (e na fantasia em geral) é a credibilização do momento presente (futuro) em que se desenrola a história com recurso a uma antiguidade há muito desaparecida e que deixa vestígios como práticas, lendas e mitos, ruínas, relíquias, palavras, rituais… Mesmo uma civilização do futuro precisa de mistérios como gravuras rupestres, stonehenge, pirâmides egípcias e templos maias. Neste particular, o romance de Gene Wolfe é fantástico e rendilhado como os de Tolkien. Consegue criar lendas e mitos dentro do próprio tempo cronológico. O protagonista pertence a uma guilda milenar de torturadores que vive numa torre numa cidadela, mas no mundo exterior à cidadela, a existência de tal guilda é considerada uma fábula do passado.

Se têm interesse, recomendo mesmo a leitura desta apresentação de Gene Wolfe e da sua obra.

Dune e o remake urgente

Terminei hoje a leitura da triologia Dune de Frank Herbert. Se a maior parte dos remakes de filmes me parecem condenados ao fracasso ou à irrelevância na maior das hipóteses, o caso do “Dune” de David Lynch que se recusou a assumi-lo, tal foi o seu divórcio para com a obra, é exactamente o oposto que acontece. Existe uma matéria prima fantástica e o filme foi um flop. Irei rever o mesmo em breve. Esteve para serRidley Scott a realizá-lo, curiosamente. Era melhor que o fizesse agora, em vez de brincar aquele Prometeus, que não sendo mau, não foi eish.Terminei hoje a leitura da mítica trilogia de Frank Herbert e está furos acima do que me recordo do filme. O próprio Lynch queria dois filmes e o seu primeiro take tinha 4 horas. Eu até acho que isto era melhor para série televisiva, à Game of Thrones, mas teria de ter um estilo mais adulto e denso,

a aurora rosa

Vai fazer amanhã um ano, a minha filha. Há um ano, esta noite foi de nervosismo. O parto teve de ser induzido por isso sabíamos que decorreria no dia 23 de Agosto e que desde manhã cedo que iríamos estar no hospital a iniciar o procedimento. Tudo isto aumentou ainda mais a expectativa do momento, isso e o facto dos preparativos se assemelharem em parte a ir de viagem, pela mala de roupa que a mãe tem de levar e a logística de certas coisas de última hora. Sabia que por aquela hora no dia seguinte, já teria conhecido a minha filha e que, apesar de regressar a casa só, teria agora uma família maior. Outra pessoa. Do aparente nada. Ainda não consigo compreender isto. Estávamos eléctricos, mas apesar de tudo dormimos bem, tirando o facto de eu acordar às 5:00 e ter ido correr. E nessa manhã vi uma aurora cor de rosa que nunca esqueci.

 

bem vindos ao futuro

edit: alterei a parte em que remetia um link para o Espumadamente pois o texto dava a impressão errada que o mesmo fez parte da manobra de marketing, quando de facto queria apenas linkar para o seu post que a denunciava.

Vem isto a propósito de jornais como DN divulgarem o video falso do tipo a correr para o tornado como se fosse verdadeiro. Que as pessoas divulguem vídeos virais falsos como se fossem verdadeiros, com efeitos digitais ou campanhas publicitárias disfarçadas etc., ainda percebo e já me habituei. Há coisas  bem piores. Por exemplo, não me habituei  à ideia que milhões de portugueses acham mesmo que o Fernando Pessoa escrevia frases motivacionais à Paulo Coelho para lhes alegrar o dia. É uma guerra em que não me meto desde 1999, de cada vez que recebia o e-mail da seringa com sida nas cadeiras do cinema, da ninhada de cães para dar ou do transplante de medula. Cansei-me do “mas pode ser verdade, não sabes” que ouvia de volta quando, teimosamente, coleccionava os factos que provavam que aquilo era falso, por exemplo, que os próprios já me tinham enviado a foto daquela pessoa desaparecida, mas com outro nome e outros contactos e que se eu quisesse aborrecê-los, podia editar os contactos, meter lá os deles e fazer forward. Não vale a pena. As pessoas gostam de ver reforçados os seus preconceitos e ver confirmados os seus medos ou fantasias ou sentirem que salvaram a vida a uma criança desconhecida com um botão de like. É uma lição que vale a pena fixar. E hoje, o banal real ou a ficção assumida já não serve, não tem interesse, tem de ser tudo amplificado por uma manobra qualquer de ilusão, sendo que a fama cibernética é dinheiro em 2014. O custo e danos de reputação de se descobrir um embuste são tão irrelevantes num contexto em que a ética desaparece e a memória também, ao ponto de vermos que há empresas que aceitam de bom grado um pouco de má reputação junto de uma minoria em prol de projecção mediática gratuita nas massas. Até aconteceu aqui nos blogues, conforme relatado aqui pelo Espumadamente, quando um inner circle qualquer promoveu activamente um livro de um amigo / colega, um Luís Carmelo, com a notícia falsa de que uma jornalista tinha sido raptada. Na discussão que se seguiu depois, os que acharam aquilo duvidoso foram acusados de terem pouco sentido de humor. Tudo bem. Para o Luís Carmelo, ficar registado na memória de muito poucos como eu por isto foi mais do que compensado por ter vendido meia dúzia de livros a pessoas do tipo das que partilham mensagens motivacionais do Einstein em brasileiro. Tudo bem. Se Orson Welles sofreu pelo embuste da invasão de marcianos e que era em si uma sátira brilhante à credulidade das massas, hoje os embustes são inconscientes, mecânicos ou com fins meramente lucrativos. Hoje são vídeos virais, ontem eram leões a comer pessoas num circo romano. O que me preocupa é quando os media oficiais fazem o mesmo, não só reforçando a sua galopante redundância, como activamente demitindo-se do papel de informar, ao desinformar e amplificar informação falsa. Aqui, a notícia interessante poderia ser a falsidade do vídeo. Era isso que traria relevância ao jornalismo, ao mostrar que sem media oficiais ficamos entregues ao caos e à desinformação e que afinal eu preciso deles, não posso ficar entregue às mentiras da internet. Mas afinal não, chegámos ao ponto em que os jornalistas não se dão a 60 segundos de trabalho para validar uma informação, que foi o que eu demorei a descobrir que o vídeo era falso.  Aqui preocupa-me porque o comportamento, mesmo a nível de gestão pura e dura, de lucros, de preservação do seu papel, é suicida, é auto-destrutivo. Seja para o jornalista que afinal é um mero gestor de conteúdos que se limita a postar links (é pago para isso?), seja para o jornal em si. Talvez isso explique porque li há dias uma brilhante conclusão da parte de um jornalista: “o Japão é o país do mundo com a população mais envelhecida, no entanto, também é o que tem maior esperança de vida”. Esta decadência, por vezes com contornos engraçados, outras vezes nem por isso, preocupa-me porque é um espelho de uma decadência civilizacional objectiva e não relativa. É um sinal de perigo, de que posso estar num caudal histórico a caminho de umas cataratas para trevas que ainda não vislumbro.  Hoje é um vídeo parvo, ontem uma conclusão de pessoa sem formação estatística elementar, amanhã são as imagens de uma operação militar qualquer que afinal ocorreu há 4 anos noutro continente e daqui a 5, 10 anos para me justificar uma intervenção militar do meu governo. Não existe contexto cronológico e verdade, tudo uma nuvem de um gigantesco eterno AGORA em que é mais barato digitalizar notícias do nada, receber videos dos smartphones dos users e fazer copy paste da internet do que efectivamente ter jornalistas a ver, a registar e a analisar as coisas com uma visão crítica, a testemunhar. Dá a sensação que, como li há tempos numa boa piada, o 1984 do George Orwell não foi encarado como um aviso, mas sim como um manual de instruções.