Tropecei neste extraordinário pedaço de retórica no Observador, pela pena do escriba Rui Ramos, a propósito das recentes declarações do pobre Stephen Hawking que disse não acreditar na existência de Deus e que é ateu (mas está, como veremos, e como Rui Santos demonstra habilmente, enganado). Antes de prosseguir, gostaria de salientar que este foi um golpe duro, o desferido por Stephen Hawking. É um homem que há cerca de duas décadas estava no goto de muitos religiosos pela sua teoria das singularidades: como os buracos negros não possibilitavam qualquer transferência de informação, o que neles “caía”, digamos assim, perdia-se para sempre e deles nada saía (observações empíricas provaram que afinal não será exactamente assim). E que o momento de criação do universo tinha sido uma singularidade, ou seja, era impossível reconstruir a criação, ela era infinitamente misteriosa. Nessa altura teólogos ficaram entusiasmados, pois o mais proeminente físico vivo, para além de ser uma bandeira (involuntária) contra eutanásia e mostrar que qualquer tetraplégico pode muito bem descobrir os segredos do universo inteiro se lhe derem um Magalhães, um comando de playstation colado ao queixo e bom material escolar, o mais proeminente físico, dizia, tinha demonstrado matematicamente, vejam bem senhores, matematicamente, que a ciência tinha um limite, que a realidade estava pejada de micro-buracos negros, que tudo podia acontecer e era plausível, inclusive os milagres, pois Hawking demonstrara a existência desse muro opaco que separava o terreno do território celeste de Deus nosso senhor. Ou pelo menos, assim o interpretaram muitos religiosos que se apressaram a concluir tal coisa em artigos de opinião. Tenho boa memória porquê? Porque na altura, já na minha imberbe adolescência, achei curioso que as pessoas de Fé não tivessem reticências em subitamente aceitar conclusões científicas quando estas coincidiam com as suas próprias convicções, mas que quando delas divergiam, as desvalorizavam e, mesmo não negando a validade do mundo científico, relegavam-nas para um plano inferior ao da discussão teológica e da fé. Outro aspecto positivo do trabalho de Hawking do ponto de vista da Igreja, foi o ter elevado de tal forma o nível de complexidade e abstracção da matemática envolvida nas suas teorias, que para 99.9% da população elas são tão místicas e misteriosas como uma missa em latim.
Portanto, para alguns crentes, isto que Hawking fez foi um bocadinho uma desfeita, isto de dizer preto no branco, estas coisas, apesar do homem já no início dos anos oitenta ter dito que Deus era desnecessário se o universo fosse fechado desde a criação – Deus não teria livre arbítrio e até o disse em conferências organizadas pelo Vaticano. Mas adiante. Rui Silva achou por bem intrometer-se em frente à cadeira de rodas de Hawking e fazer-lhe assim STOP com a mão. Alto aí, não tão depressa, caro Stephen.
Devo dizer que comecei a ler o dito artigo sem qualquer preconceito e o choque foi descendo sobre mim, causando-me formigueiros nos membros e por fim alguma paralisia. Estar-me-ia a transformar em Stephen Hawking, sofrendo da maleita que o acometeu? Terá Stephen Hawking sido exposto, em pequeno, a um catequista particularmente obtuso e terá, por via de espasmos nervosos, ficado paralítico em grande aflição, como eu fiquei depois do almoço a ler isto? Não sei quem é Rui Roberto. Se fosse alguém como João Cesar das Neves ou o Saraiva do Sol, eu saberia mais ou menos com o que contar e não me apanhavam desprevenido, até os leio com boa disposição. Mas este tem uma fotografia de colunista em que parece alguém cosmopolita, moderno, sofisticado, urbano, modern, de quem num momento fala de um destino de férias exótico como no momento a seguir tem uns apontamentos de política e economia com generalidades do género “é necessário Portugal ter uma estratégia de crescimento” etc. etc. Nada nos prepara para isto, portanto. O artigo começa com a mais fantástica peça de retórica e de silogismos que já me foi dada a ler. Tentem seguir o raciocínio de Rui Paulo sem ser perderem:
Stephen Hawking acredita que Deus não existe. Ora, isto não é a mesma coisa que não acreditar em Deus. Se eu não acredito em Deus, eu não sei se ele existe ou não existe. Simplesmente, não tenho fé, como diria um cristão. Mas se eu acredito que Deus não existe, eu tenho fé, embora diversa – a fé na inexistência de Deus. A diferença entre as duas posições é por vezes expressa pelo contraste entre agnosticismo e ateísmo. Hawking não deixou dúvidas ao El Mundo: é ateu. Mas dizer só ateu pode não chegar para definir a posição de Hawking.
Ui. Aqui já começamos a ficar desconfiados e confusos. Vamos supor que Stephen Hawking queria mesmo só dizer que era ateu. Se vocês fossem autores de uma coluna de jornal, teriam tema para escrever se interpretassem de modo tão básico que Stephen Hawking é ateu porque disse que se considerava ateu? De modo nenhum. Rui Miguel foi pela lógica e a metafísica de inspiração teológica, mas podiam ter ido pelo lado do bug no software usado por Stephen Hawking e que o faz falar com aquela voz. Podia ser um erro de interpretação, o queixo dá um toque no comando, basta um milímetro e de ateu passamos a crentes. Se calhar Stephen Hawking é surdo e quando sorri com aquela cara enquanto fala, não se apercebe que o computador está a dizer disparates. Até há quem diga em conversas de café, que Hawkings está em morte cerebral e que é o computador que faz o trabalho todo e que não nos podemos admirar se o próximo astrofísico de relevo for o Michael Schumacher. Continuemos.
A questão é determinar de que modo, entre a fé em Deus e a fé na inexistência de Deus, Hawking passa de uma margem para a outra. A sua ponte não é o cepticismo, mas a ciência, ou melhor, uma variante muito especial da experiência científica, que funciona de facto como o equivalente laico da fé religiosa. Hawking sente pela ciência a devoção que qualquer beato dispensa ao seu todo-poderoso ídolo. Acredita piamente na omnipotência do conhecimento humano sob a forma científica: “Creio que conseguiremos compreender a origem e a estrutura do universo(…). Na minha opinião, não há nenhum aspecto da realidade fora do alcance da mente humana”
Portanto, se não acreditamos em Deus, isso é equiparável a uma fé. Eu tenho fé que Deus não existe será o negativo de ter fé que ele existe. Portanto, eu tenho fé quando acho que o Pai Natal não existe. Tenho a fé que não existe. Tenho de ter fé para negar tudo aquilo de que não tenho provas. É cansativo, o mundo de Rui Nelo. Talvez explique porque há tantos agnósticos e tão poucos ateus. Não estão para se chatear. Se dissermos “não acredito na existência de Deus” mas o dissermos de forma muito convicta, pode ser indelicado e ofensivo, é preferível o mais português “eu acho que não existe… se existe ou não, não sei, não quer dizer que não exista, cada qual sabe de si não é? Hoje é assim, amanhã como é? Não sabemos” etc. Isso e acrescentar “mas sou uma pessoa espiritual”.
Continuemos. Para Rui Armindo, é claro que há uma variante de experiência científica que é o equivalente laico da fé religiosa. Eu deduzo isto porque ele escreve explicitamente essa mesma frase. Hawking, prémio nobel da física, uma das mentes mais brilhantes de sempre, um homem que lida com a linguagem límpida da matemática, que constrói teorias com base em observações empíricas cada vez mais sofisticadas, sempre sujeito a revisão (que até sucedeu no seu tempo de vida), que tem o seu trabalho esquadrinhado e testado por cosmólogos, físicos, matemáticos, astrónomos, astrofísicos… é aqui reduzido a “um qualquer beato”. Não há diferença entre Hawking e a sua devoção pela ciência e uma velhinha que faz os 100 metros de joelhos em Fátima para expiar a tristeza de ter um filho que escreve artigos assim no Observador. Hawking disse ao El Pais: creio que conseguiremos compreender a origem e a estrutura do universo(…). Na minha opinião, não há nenhum aspecto da realidade fora do alcance da mente humana”, para Rui Tovar é uma omnipotência, um disparate, como seria navegar à volta do globo e não “cair para baixo do outro lado” para o seu bisavô e outros disparates semelhantes.
O pior vem aqui. Não é bem o pior. Mas não há dúvida que Rui Moreira tem a capacidade de nos puxar cada vez mais para baixo, em direcção a lagos de fogo cheios de diabos com tridentes, como um poema do Dante.
O mais surpreendente em Hawking é a pobreza da sua concepção de Deus. Hawking passa por cima de séculos de meditação e de debate. Simplesmente, não vê “milagres” (porque não são “compatíveis” com a sua ciência), e portanto não vê Deus. No “passado”, antes da ciência, admite que era “lógico acreditarmos que Deus criou o universo”. Deus é, para ele, uma relíquia de fases primitivas do conhecimento humano, quando o gentio ainda não percebera que a natureza estava proibida de divergir das leis fixadas pelos professores universitários. É nesse sentido, que Hawking crê que Deus foi substituído pela ciência
Hawking, em vez de perder tempo com as suas teorias e ideias cabeludas, andou a estudar as coisas erradas, não meditou nos assuntos certos. Em vez de procurar aprender as coisas pela Bíblia, pelos ensinamentos passados de geração em geração, teve o desplante de olhar para o futuro pelo telescópio mágico da atrofísica, essa arte do demo que permite antecipar milagres como o da energia nuclear ou relatividade do tempo meio século antes da humanidade ter os meios para concretizar a prova empírica. Hawking perdeu os fantásticos debates e não meditou nos assuntos do grande sábio Rui Semedo. Ele sim, meditou e em vez de passar por cima da catequese, prestou atenção. Se Hawking não vê milagres, é porque não está a ver com atenção. E vocês vêem milagres?
Para os cristãos, Deus fez-se carne; para Hawking, Deus fez-se ciência, e é por isso que não hesita em reivindicar para a ciência todos os tradicionais atributos divinos, menos os “milagres” – o que, todavia, não o impede de avançar com transcendentes promessas de salvação, como a de que a exploração espacial “poderá evitar o desaparecimento da Humanidade devido à colonização de outros planetas”. A ciência, aparentemente, tem os seus milagres, embora do género Star Wars.
Primeiro, Hawking nunca diz, foda-se, nunca, que DEUS FEZ-SE CIÊNCIA. Isso é uma interpretação do Rui António. Aqui já estou a começar a perder a capacidade de distanciação irónica. Não sei como o maradona ou o alf conseguiam fazer estas coisas com nível até ao fim, eu chego a meio do texto e já estou exausto. Portanto, a exploração espacial e a colonização de outros planetas, é para o Rui Pedro, uma transcendência “do género Star Wars”. Que a humanidade perante a inevitabilidade da morte do Sol, de algum cataclismo cósmico, daqui por 10 mil, 100 mil, 500 mil anos seja capaz de engendrar uma solução como gigantescas naves com biosferas, capazes de viajar pelo espaço à procura de planetas colonizáveis, é para o pequeno Rui António, uma transcendência idiota, mas acreditar na Palavra do Senhor, numa judeia far far away…
O golpe fatal, enfim, fetal, vem no último parágrafos. Aqui Rui Fernando parece querer empurrar Hawking de umas escadas abaixo:
A ciência não é necessariamente sabedoria, se entendermos por sabedoria, não apenas o raciocínio e o conhecimento, mas também a humildade e a ponderação. Hawking pode ser um génio da astrofísica, mas não é um sábio. Chesterton dizia: quando se deixa de acreditar em Deus, passa-se a acreditar em tudo. O Hawkings da entrevista ao El Mundo é um exemplo dessa credulidade. Onde tudo isso nos pode levar, vimo-lo o mês passado, graças a outro crente da ciência e inimigo de Deus, o geneticista Richard Dawkins. Sem inibições, deu a entender que, por ele, “é imoral” não abortar fetos com síndroma de Down (Rui Filipe até meteu link e tudo!!!) Eis a ideia de moral de quem, com a “lógica” do seu lado, se sente um novo deus.
Portanto, até 95% do texto temos Hawking no texto, mas tudo não passa de uma armadilha bem urdida. Notem como o texto evolui até à catarse final deste parágrafo. O artigo começa com as típicas cogitações e floreados de retórica infantil que aturamos de amigos católicos com os copos naquelas discussões acesas no Bairro Alto, mas que aqui num artigo Rui Terêncio quer fazer passar por filosofia da pesada, vai-se entusiasmando texto abaixo e no fim, zás, ocorre um milagre no texto. Notem como o Hawking passa primeiro a Hawkings (vermelho é meu) e depois já falamos de Dawkins e o artigo termina com um “eis a ideia moral de quem, com a “lógica” (entre aspas, claro, bastam aspas para dar aquele toque de gozo a uma palavra) do seu lado, se sente um novo deus. E agora seria preciso defender Dawkins Hawkings Hawking. Em vez disso, deixo aqui um belo poema de uma personagem de um livro do Eça de Queiroz, e que um amigo meu, bastante ébrio, costumava recitar para gáudio geral e que aqui reproduzo de memória
Deus Existe
Tudo o Prova
Tanto tu altivo Sol
Como tu raminho verde
Onde canta o Rouxinol
Não sei se já te passou a irritação (suspeito que deve ser excesso de cafeína, a avaliar pela catadupa de posts que andas a produzir) mas aqui vai o meu breve apontamento sobre este assunto: não defendendo nem os argumentos do Rui Ramos, nem a demagogia na formulação dos mesmos, a verdade é que estas declarações do Stephen Hawking, que fui ler no original, têm muito de positivismo, que qualquer cientista honesto do século XXI sabe que é caminho a evitar.
Por que é que ser ateu não pode ser uma forma de fundamentalismo? É afirmar ter a certeza absoluta acerca de alguma coisa. E muitas vezes dedicar tempo precioso nesta vida alegadamente finita a tentar provar que aquilo em que não se acredita não existe mesmo – mas essa componente de miaúfa percebo-a bem, como crente com dúvidas diárias.
Penso que a maior parte das ciências não lida actualmente de forma tão directa com alguns dos redutos do desconhecido que tocam em áreas como “a origem de tudo”. Mas foi o mesmo com Copérnico, Galileu ou Darwin. Talvez isso dê a impressão que Hawing é mais positivista que um cientista honesto que analisa o ADN da mosca da fruta, mas que não mexe com temas grandes como Darwin mexeu, especialmente agora que certas ideias já assentaram. Penso que Hawking tem razão quando diz que Deus é fundamentalmente a resposta ao desconhecido que se vai (ou tornaria) menos necessária e que só a existência dessa tendência bastaria para justificar o seu fim enquanto crença actual, em 2014. Gosto do positivismo de Hawking. A ilusão é pensar que estamos muito à frente do tempo de Copérnico ou Darwin. Não estamos e é possível que nunca estaremos. Quanto à questão de Deus… parece-me que o erro histórico da Igreja está nos conflitos no território da ciência, como este, conflitos que, a não ser que imponha a sua visão por uma sharia ou aquelas escolas americanas onde se ensina o creacionismo, está condenada a perder e que a faz parecer sempre retrógada e ultraconservadora e apologista da pura ignorância, para controlo das massas. Foi sempre assim e é muitas vezes assim. O artigo do Rui Inácio é disso exemplo quando despreza a possibilidade de colonização de outros planetas como solução para a sobrevivência da espécie humana e a remete para o filme Star Wars. É a torre de Babel, suponho. E nesse plano, acho que as religiões merecem levar toda a pancada positivista que puderem apanhar.
De resto não acho mesmo que Hawking (muito ao contrário de Dawkings por quem não tenho qualquer interesse pois acho os ateus militantes muito entediantes e mais destinados ao público americano onde de facto o combate é real) dedique tempo precioso a tentar provar Deus não existe.
Crente com dúvidas diárias ou descrente com dúvidas diárias, duvidar todos os dias da mesma coisa deveria ser um alerta, non?…
Alerta do quê? De que pode não existir Deus e a minha crença pode ser infundada? Eu contemplo essas hipóteses com toda a seriedade, como qualquer ser racional. Mas a Fé tem muito de irracional, tal como muitas das melhores coisas da vida.
Bravo! Não há pachorra para este género de idiotas! Mas são às centenas e sempre a citar Chesterton! Puta que os pariu!
O que já me ri com este post…também não estava preparada para tanto humor macabro. Terêncio, o meu preferido 🙂
Entretanto fui ver quem era o Rui de apelido saltitante e devo dizer que fiquei espantado. Afinal o gajo é mesmo o Rui Ramos, o historiador respeitável. E eu não consigo consigo compreender que espécie de estupidez o levará a meter-se neste tipo de sarilhos. Eu, por exemplo, não me meto. Mas que caralho me importa a mim que o Rui ou o Esteves, sejam eles quem forem, achem ou não achem Deus no firmamento, ou seja lá onde caralho for? Nada, absolutamente nada. Isto, evidentmente, desde que não me incomodem. Ora a argumentação pífia, forçada, batoteira, insidiosa, prosélita, e isto para já não falar das citaçoes idiotas do Chesterton, não só me incodam como me irritam. Este gente não tem é juizo. O problema é esse.
Crente ou descrente, jamais indiferente !!! Já tinha saudades 🙂 🙂 🙂