os destroços

Léon por fim jurara não tornar a ver Ema; e censurava-se por não ter cumprido a sua palavra, pensando no que essa mulher poderia ainda trazer-lhe de embaraços e sermões, sem contar os gracejos dos colegas, que se divertiam com ele, de manhã, em volta do fogão. Além disso, ia ser promovido a primeiro escrevente: chegara o momento de encarar as coisas a sério. Por renunciou à flauta, aos sentimentos exaltados, à imaginação; – pois todo o burguês, no entusiasmo da juventude, que mais não seja por um dia, ou um minuto, se julgou capaz de imensas paixões, de altos empreendimentos. O mais medíocre dos libertinos sonhou possuir sultanas; cada notário traz em si os destroços de um poeta. – Gustave Flaubert, Madame Bovary

o desvio

Quando Lisboa emerge assim soalheira, ainda que hesitante, de dias e dias de chuva negra, costumo sentir-me regenerado. Lembro-me sempre porque não aguentava um inverno inglês ou belga. Hoje, já mais repousado da menor carga de treinos (a maratona de Málaga está quase aí), não resisti, em vez de virar à direita depois de deixar a miúda na creche e fazer 7km de bicicleta até ao trabalho, fiz 16km. Descer da Belavista ao Parque das Nações por ciclovias semeadas de belas folhas outonais douradas, depois junto ao rio até ao terreiro do paço, com o sol nas trombas e o vento fresco, limpo, o ar lavado. Que deleite. Que privilégio. É minha, esta cidade. Café num quiosque de rua, subida ao Chiado… Tudo meu.

vencer, perder

Criticar certas coisas é tão útil como criticar os dias de chuva no inverno. Mesmo assim, vamos lá.

Tendo em conta que por profilaxia já não leio conteúdos de imprensa generalista, sobram as parangonas e a consciência colectiva dos blogues e facebooks que as replicam.  Sofia Lisboa, vocalista dos Silence 4,  lutou e venceu o cancro. Isto multiplicou-se em toda a imprensa e muitas redes sociais. Lutou e venceu, sai livro, nunca desistas. Recordo-me de Duarte Lima também ter lutado e vencido a leucemia e no caso dele,  foi a fé que o salvou. Disperso-me. Obviamente que fico feliz e tenho empatia pelo caso de Sofia Lisboa. O meu problema é com a escolha de palavras e a forma como a sociedade (a sociedade saudável ou os que venceram e metem um livro nos escaparates) vê estas coisas. E o António Feio? Lutou e perdeu? E a menina Nonô? Derrotada? Desistiram? Morrem 24 mil portugueses com cancro todos os anos. Perderam? Tinham menos fé? Menos vontade? É que se uns vencem o tal combate, temos de assumir que outros perdem.

O termo correcto devia ser sobreviver a um cancro, como dizemos sobreviver a um desastre de viação ou naufrágio. Sobrevive-se, um dia de cada vez, entregue a uma rotina e tratamentos a que se é sujeito, tendo espaço para intervir em certas coisas, como seja ter um estado de espírito positivo, seguir as recomendações, tentar, vivendo entregue à sorte, ao destino, às estimativas dos médicos.  Isto por respeito e verdadeira empatia com os que não sobrevivem e as suas famílias. Parece que em cada doente oncológico famoso ou interessante do ponto de vista dramático (uma criança sorridente e bem disposta) a sociedade “saudável” projecta uma falsa empatia, uma fantasia em que é preciso ter um mindset e uma atitude certa, a que eles teriam, a que os seus teriam, para não perder o tal combate.

fruição

Madame Bovary de Gustave Flaubert. Aí está o clássico lugar comum que se começa a ler para despachar a coisa que devia ter sido despachada há muito e tungas. Muito bom, muito bom, este vai para a prateleira dos meus favoritos. Lembra-me Eça e podia tecer aqui comparações, mas seriam injustas, não leio Eça há 10 anos e a memória que tenho é que a nível de obra obra obra, não tem uma tão boa como o Madame Bovary, não tem, pronto, o que não quer dizer que o Eça não seja 1000x melhor porque é nosso, como o cavalo de barcelos e o queijo da serra da ilha, o dois em um. Muito bom ter lido isto agora, com idade para o fruir. Há certas coisas que só se frui quando se é maduro e se pode ser cúmplice. Isto de fruir, não é para jovens. Eu estou na curva descendente da minha vida física, travada por intensas e épicas correrias, mas espero iniciar uma fase ascendente de fruição intelectual, dos sentidos. Gostava de poder chegar  um ponto, por exemplo, em que aprecio emoções humanas, inclusive as minhas, como quem saboreia um bom vinho do douro.

boas noites

Olá. Tive muitas saudades vossas, mas não sei bem o que dizer aqui. Tenho tido muito que dizer e pensar a propósito das corridas, mas da vida artística e interessante, assim de coiso maldito, pouco, muito pouco. Acho que agora vou começar a andar com a minha máquina fotográfica constantemente e tentar tirar uma foto engraçada de vez em quando, a começar amanhã, porque eu vejo coisas mesmo muito boas. Vou ao Porto, em trabalho, e como vou de comboio desta vez, terei tempo para contemplações e meditações. Este domingo, por exemplo, fiz chili. O meu chili é bom, mas bastante picante. Muito picante. Para a Júlia poder apreciar o meu chili fiz-lhe um baby chili numa mini panela, sem piripiri, nem caldo de carne, nem sal. Só feijão, carne picada, tomate, um pouco de cebola… enfim, o neutro. A cena da panelona de chili ao lado da panelinha de baby chili no fogão fez-me ficar muito emocionado e é assim que se esvazia a cabeça de uma pessoa. Mesmo assim posso tirar fotografias no modo dynamic black & white da minha máquina, é mesmo muito bom.

por enquanto perdi o melhor amigo

Os sintomas sempre lá estiveram, desde há pelo menos 20 anos. Antes do episódio psicótico e internamento no Júlio de Matos, passaram por feitio, um feitio que se foi afundando. Discussões, eu puxava por ele, num loop progressivamente mais longo e doloroso. Agora vejo tudo sobre outra luz. A fronteira não é assim tão ténue, entre lucidez e o seu o oposto que me recuso a nomear. É não ser capaz de ter a consciência de si. Se calhar, se me pedissem para assentar num papel tudo aquilo que foge de mim sem o meu controlo, eu talvez fosse capaz de fazer uma boa lista. Sou capaz de assistir a mim próprio, como a maior parte das pessoas. Ele não. A sensação de falar com uma superfície, com a espuma da crista de ondas de um mar profundo onde ninguém chega. De lhe dizer “olha que tal e tal, não faças isso, faz isto” e de ver do outro lado um sorriso tímido que esconde uma total indiferença. A tentação de desistir é muita, agora que tenho a minha filha e não tenho tempo livre para grandes audácias. Acho, neste beco sem saída, que a salvação reside numa obrigação, numa rotina em que o obriguem a agir contra a vontade dele, tudo fora da zona de conforto. Mas o que sei eu?