melhor dia de sempre

Hoje foi o melhor dia de sempre, percebi isso quando, depois de uma overdose de baloiço e escorrega, bebemos de um bebedouro daqueles de parque com repuxo e a J. achou boa ideia tentar agarrar o repuxo. Antes, fomos ao médico, levou vacina, chorou um pouco, mas pouco, foi crescida. Foi com orgulho que respondi às questões do Doutor. Se diz 10 palavras? ahahaha 100. 1000. Percentil +85% em tudo, incluindo perímetro encefálico, a maldição dos Bray. Fomos ao McDrive da 2ª circular e estacionei e ficámos a comer e a relaxar à sombra, ela com um penso no braço esquerdo que lhe fazia comichão a mastigar mcnuggets, a ouvir os carros, a comentar o nada. Mais tarde comemos morangos ao lanche, ficou com a boca vermelha, parecia baton esborratado. Vimos bonecos, preguiçámos no quadrado de luz na cama, à tarde. Foi um dia fácil. Venham mais viroses.

faltar às aulas

Desde que ela nasceu é a primeira vez que falto ao trabalho por motivos de doença dela. Até que enfim. Também me pegou o bicho e estamos os dois a curtir imenso esta dádiva viral. Sim, estamos “desarranjados”, não, não nos sentimos particularmente bem, mas o que é isso comparado com não irmos para a creche ou para o trabalho? Está a ser muito divertido. Ainda por cima ela quando fica doente, fica mais molinha e sossegada, um anjo *

foste quase má, quase

Filha, quero, que saibas, quando leres estas linhas daqui a 10-15 anos, que hoje parecia que tinhas sido má para mim mas não foste. Podia parecer porque eu te fui buscar à creche e em vez de me agarrares com um abraço ficaste em cima da cadeira a olhar para o lado e a dizer “não” de cada vez que me aproximava de ti e a empurrar-me com a mão. Vinhas a correr para mim e ao chegar a mim, viravas para o lado e fingias não me ver. Riste-te quando te pus às costas no baby carrier, adormeceste nas minhas costas e não disseste nada o caminho todo. Acordaste quando chegamos a casa e acendeste a luz. Não era preciso, com a mudança de hora ainda se vê perfeitamente, mas eu deixei-te acender a luz porque é trabalho de equipa e gosto de ver o teu pequeno indicador muito tenso direito ao interruptor. Subi os 2 andares contigo às costas, a ouvir o teu capacete a roçar nas paredes, com a bicicleta carregada da tua roupa cheia de merda nos alforges, que nunca mais te passa a virose, os meus livros e a mochila da creche. Em casa viste o LCD de 45 polegadas e pediste televisão e dei-ta. Cada tentativa de interacção contigo foi recebida com um violento chapo na cara e um “deixa, quero ver, sai”. Fingi-me interessado no elefante, no hipopótamo e nos patinhos. Fiz-te o jantar e fui recompensado com “não quero, não quero pai, não quero” e uma birra quando te coloquei um pedaço de salmão, excelente, no teu prato. Lavei-te os dentes. Mudei-te a fralda, mais cocó. Vesti-te o pijama. No fim lá me deste-me um abraço forte e deitei-te ao lado do cão de peluche que tu por nessa altura pensavas ser um cão a sério e não um objecto inanimado. Fiquei à espera a ver se tu dizias as palavras mágicas do costume e disseste “pai quero beijinhos”E sorriste e esticaste-te, abraçada ao cão. Dei-te uma grande beijoca multiplicada por 10 em toda a bochecha esquerda, a da covinha. Fizeste bem. Desta safaste-te e amanhã até sou capaz de tentar de novo dar-te o jantar.

eu e o mar

Apanhei dois sargos pequenos e um peixe coiso que não sei o que é, mas espero que a minha filha goste dele. Depois da ida ao oceanário e de ter vindo de lá com um Nemo de peluche, tenho a certeza que vai gostar de ver um espécime no prato. Mas feito esta pequena introdução, devo advertir que continuo sem perceber nada do mar e de peixes. Ontem, fustigado por um vento gelado que afugentou os peixes e os pescadores todos, equilibrado precariamente numa rocha irregular em frente a uma falésia, senti-me como um jovem de esquerda, à espera de um emprego com um canudo de Ciências da Comunicação na mão. Ele não veio, o peixe, e fui-me embora com princípios de hipotermia e indignado com o governo. Jantei no porto de Peniche, ouvi conversas, li muito. Depois fui para o meu bungalow para escrever, mas em vez de escrever, bebi duas cervejas e fui ler e dormir. E dormi muito. No outro dia fui pescar de novo com o sol a nascer. E quis a sorte que fosse Domingo de concurso de pesca e todos os pesqueiros estivessem repletos de profissionais. Estive quase duas horas sem apanhar nada. Chegou-se à minha beira um velhote com um colete do patrocínio e perguntou se podia pescar ao meu lado. Disse-lhe que sim. Entretanto fui fazendo sandes de queixo e presunto com a minha faca de pesca que uso à cintura. Quando a tenho à cintura, faço tudo com ela, corto o pão, o pacote de presunto, o queijo, aparo a linha, o camarão, a sardinha, tudo. Gostava de andar sempre com aquela faca à cintura, nem que fosse para abrir envelopes no escritório. O velho tirou uns 5 sargos em menos de uma hora. Às tantas desisti, arrumei as coisas e fiquei a vê-lo e a fazer-lhe perguntas. Já tive várias situações em que ninguém apanha nada, nem eu, nem os pros, mas esta foi um exemplo claro de que não sei nada. Ainda voltei à tarde, antes de ir para Lisboa. E não apanhei nada. Sou extremamente teimoso, mas não sei se é uma qualidade por aí além naquilo. Em vez de adaptar a minha técnica às condições, eu são tão teimoso que mantenho a minha técnica até as condições se ajustarem a mim. O certo é que não pensei uma só vez em quase 48h.

eu confesso que fui um dos candidatos a escrever o livro de José Sócrates

… mas fui rejeitado. O brief que José Perna  – na altura anónimo – me entregou em mão, na esplanada do Chopperia do centro comercial Vasco da Gama, era para «desenvolver uma análise a partir de três abordagens complementares: desfilar a argumentação pelos canais da História, abordar os aspectos éticos da questão e acentuar os danos que a prática da tortura acarreta às próprias instituições democráticas. Ao candidato pede-se que desmonte pedra por pedra, de forma convincente, todas as falácias a respeito da admissão do emprego da tortura em casos excepcionais.»

Quando perguntei ao José Perna se havia alguma falácia em particular que incomodasse o cliente em questão e que quisesse ver desmontada com mais convicção,  encolheu os ombros, disse que não sabia nada e que tinha de ir para Paris levar fotocópias e apontou para dois sacos Le Cocq Sportif muito grandes e de aspecto pesado. Achei o brief esquisito, cheirava-me a coisa de pessoal de esquerda com aspirações presidenciais, talvez Manuel Alegre, e não me apetecia aturá-lo de novo. Garantiu-me que não, que não, mas eu tanto insisti em saber quem era o cliente (é importante, uma vez que tento sempre adaptar a voz à pessoa que depois vai assinar o livro) que o João Perna lá se descoseu. Quando disse quem era, benzi-me, cuspi no chão do Vasco da Gama, virei costas, mas ele veio a correr atrás de mim, arrastando os sacos e abriu um deles e disse-me ‘olha que se fores seleccionado, este trabalho dá-te muita fotocópia”. E pude ver as fotocópias. Muitas. Parecia uma reprografia.

Então passei os dias seguintes a trabalhar com afinco, pensando em como escrever algo que pudesse ser credível ter sido José Sócrates a escrever . Acreditem, se sofri a escrever a Filha do Capitão e só o consegui à custa de ler todas (e reforço o todas) as revistas Maria publicadas desde 1989  e consumir estupefacientes,  aqui a coisa exigiu muito pior. Fiz maratonas de RTP Internacional, dias a fio. Ao fim de uns dias, para além de sentir um estranho desejo de ser piloto da lufthansa e libertar os meus passageiros de uma dolorosa existência terrena, senti-me preparado para tal desafio.  Redigi apenas dois capítulos para ir a concurso, de que mostro aqui um excerto, não tendo obtido resposta após isso.

…e por isso tortura não é uma forma adequada de obter e apurar a verdade, nem mesmo em situações extremas. Citando Sartre: “O homem não é a soma do que tem, mas a totalidade do que ainda não tem, do que poderia ter” Vejamos um exemplo. Vamos supor que um presumível terrorista – chamemos-lhe Ahmed Gomes, pois é filho de 2ª geração de imigrantes pobres da periferia de Lisboa e foi submetido a exclusão social – é suspeito de ter escondido um engenho nuclear de média potência numa mochila numa creche da Grande Lisboa, pondo em perigo a vida dessas crianças e de passantes. E nós somos os seus interrogadores e estamos, naturalmente, zangados com ele. Ahmed, procurando defender os seus interesses, diz que não foi ele, que não escondeu engenho nenhum. Ahmed, que tem todo o aspecto de ser um terrorista, com barbas e uma kalashnikov a tiracolo e um cinto de explosivos, não quer responder às nossas perguntas. O que fazer perante tal arreliante situação? O agente Silva, de bigode e ar autoritário, sempre pragmático, de direita, sugere o espancamento com uma lista telefónica molhada. Do outro lado, o agente Leonardo, homossexual e tolerante, diz que talvez Ahmed esteja a falar verdade e não saiba de engenho explosivo nenhum. É um dilema complicado. Leonardo tenta uma abordagem diferente. Avisa o agente Silva de que está a por em causa os valores da democracia e a precipitar-se nos julgamentos e cita Montesquieu, de quem é fã: não faça ao outro o que você não deseja nem para você. Depois olha Ahmed nos seus belos olhos castanhos e pergunta-lhe “Ahmed, amigo, tu escondeste um engenho nuclear? Responde-me”. Ahmed comove-se. Pela primeira vez na vida é tratado como uma pessoa por um agente da autoridade. Citando Homero: “a vida reserva supresas para você, se deixe deslumbrar por ela.”Lembra-se de todas as vezes em que o desemprego elevado e a exclusão social o obrigaram a ser extremista. E confessa tudo. Confessa como não escondeu apenas um engenho, mas quatro, também há um no Porto, outro em Faro, outro em Leiria. Dá as coordenadas precisas e, depois de olhar para o relógio do agente Leonardo, avisa que vão explodir dentro de cinco minutos, mais coisa menos coisa. As capazes forças de segurança portuguesas, nomeadamente, a GNR Antiminas aerotransportada, lança cães especialistas de para-quedas, a partir de helicópteros. Os canídeos, depois de aterrarem, conseguem rapidamente escavar buracos e meter neles as bombas e tapá-las com terrinha, com as patas de trás. Apenas as toupeiras num raio de 200km não ganharam para o susto.  Como o leitor pode ver está desmontado o primeiro cenário em que …

Coisas em que eu gostaria de acreditar

…que as pessoas que acham muito errado o massacre do Charlie Hebdo mas que mesmo assim acham que os cartoonistas tiveram alguma culpa, sejam as mesmas que agora avançam com teorias da conspiração que o copiloto da German Wings é um bode expiatório da companhia aérea Germanwings e da Airbus e que sejam as mesmas que colocam citações da Chiado Editora no perfil do Facebook. Infelizmente, não são, já confirmei. Excepto uma pessoa, pelo menos, até agora.

às vezes gosto mesmo de nós, espécie humana, pensei nisso ao ver os familiares das vítimas nos destroços a320 nos alpes, estranhos subitamente unidos perante o abismo absoluto, em excursão nos alpes e pensei em todos nós a vermos aquilo e a projectar o que seria estarmos ali nós, ou nós no avião, é inevitável e é por isso que estas tragédias do 1º Mundo mexem connosco, são como irmãos. Eu gosto muito quando as pessoas são simpáticas umas para as outras, ainda hoje vários carros se desviaram, nas filas de trânsito, só um bocadinho, para eu passar de bicicleta no meio de 2 faixas, fazem sempre isso, um ou outro, e nem é necessário pois faço figuras tipo tetris para passar entre espelhos retrovisores, mas eles fazem e eu faço ok com a mão. E a velhota hoje na ciclovia, a andar no passeio, resolveu fazer uma diagonal do nada, de costas para mim, precisamente para a minha faixa e eu, com a Júlia às costas, “hey hey hey!” e ela deu um salto e disse “desculpe!” e eu parei e disse-lhe, era de noite e estava vento, “não faz mal, minha senhora, boa noite”. E vi um preto coxo com canadianas e estranho, com cicatrizes na cara e aspecto de sem-abrigo a entrar no café do costume e toda gente a suster a respiração, a ver que merda vinha aí e ele “um café por favor” e bebeu o café e toda gente algo desconfiada, e ele, com cicatrizes na cara, pagou e disse “boa tarde” e saiu e aquilo comoveu-me, porque para mim ficou um sentimento de alguma culpa de ter assumido o pior, mas para pessoas à minha volta também senti alívio por ele ter ido embora e eu senti que ao mesmo tempo gostava dessas pessoas na mesma. Gosto muito de ver os outros pais na creche, gosto de os ver vindos do trabalho, como eu e da empatia silenciosa, e da alegria ao levarem os respectivos monstrengos para casa. Gosto dos benfiquistas. Este texto não tem fim. Nem título, esqueci-me.

foundations, Isaac Asimov

Prestes a acabar e vou ver se não adormeço logo. Este é um livro estranho. Por um lado estou a adorar lê-lo e vou sentir um vazio quando o acabar, por outro, não consigo pensar em ninguém que eu conheça que tenha um nível geekness satisfatório para apreciar isto.  Judeus…
asimov620