eu confesso que fui um dos candidatos a escrever o livro de José Sócrates

… mas fui rejeitado. O brief que José Perna  – na altura anónimo – me entregou em mão, na esplanada do Chopperia do centro comercial Vasco da Gama, era para «desenvolver uma análise a partir de três abordagens complementares: desfilar a argumentação pelos canais da História, abordar os aspectos éticos da questão e acentuar os danos que a prática da tortura acarreta às próprias instituições democráticas. Ao candidato pede-se que desmonte pedra por pedra, de forma convincente, todas as falácias a respeito da admissão do emprego da tortura em casos excepcionais.»

Quando perguntei ao José Perna se havia alguma falácia em particular que incomodasse o cliente em questão e que quisesse ver desmontada com mais convicção,  encolheu os ombros, disse que não sabia nada e que tinha de ir para Paris levar fotocópias e apontou para dois sacos Le Cocq Sportif muito grandes e de aspecto pesado. Achei o brief esquisito, cheirava-me a coisa de pessoal de esquerda com aspirações presidenciais, talvez Manuel Alegre, e não me apetecia aturá-lo de novo. Garantiu-me que não, que não, mas eu tanto insisti em saber quem era o cliente (é importante, uma vez que tento sempre adaptar a voz à pessoa que depois vai assinar o livro) que o João Perna lá se descoseu. Quando disse quem era, benzi-me, cuspi no chão do Vasco da Gama, virei costas, mas ele veio a correr atrás de mim, arrastando os sacos e abriu um deles e disse-me ‘olha que se fores seleccionado, este trabalho dá-te muita fotocópia”. E pude ver as fotocópias. Muitas. Parecia uma reprografia.

Então passei os dias seguintes a trabalhar com afinco, pensando em como escrever algo que pudesse ser credível ter sido José Sócrates a escrever . Acreditem, se sofri a escrever a Filha do Capitão e só o consegui à custa de ler todas (e reforço o todas) as revistas Maria publicadas desde 1989  e consumir estupefacientes,  aqui a coisa exigiu muito pior. Fiz maratonas de RTP Internacional, dias a fio. Ao fim de uns dias, para além de sentir um estranho desejo de ser piloto da lufthansa e libertar os meus passageiros de uma dolorosa existência terrena, senti-me preparado para tal desafio.  Redigi apenas dois capítulos para ir a concurso, de que mostro aqui um excerto, não tendo obtido resposta após isso.

…e por isso tortura não é uma forma adequada de obter e apurar a verdade, nem mesmo em situações extremas. Citando Sartre: “O homem não é a soma do que tem, mas a totalidade do que ainda não tem, do que poderia ter” Vejamos um exemplo. Vamos supor que um presumível terrorista – chamemos-lhe Ahmed Gomes, pois é filho de 2ª geração de imigrantes pobres da periferia de Lisboa e foi submetido a exclusão social – é suspeito de ter escondido um engenho nuclear de média potência numa mochila numa creche da Grande Lisboa, pondo em perigo a vida dessas crianças e de passantes. E nós somos os seus interrogadores e estamos, naturalmente, zangados com ele. Ahmed, procurando defender os seus interesses, diz que não foi ele, que não escondeu engenho nenhum. Ahmed, que tem todo o aspecto de ser um terrorista, com barbas e uma kalashnikov a tiracolo e um cinto de explosivos, não quer responder às nossas perguntas. O que fazer perante tal arreliante situação? O agente Silva, de bigode e ar autoritário, sempre pragmático, de direita, sugere o espancamento com uma lista telefónica molhada. Do outro lado, o agente Leonardo, homossexual e tolerante, diz que talvez Ahmed esteja a falar verdade e não saiba de engenho explosivo nenhum. É um dilema complicado. Leonardo tenta uma abordagem diferente. Avisa o agente Silva de que está a por em causa os valores da democracia e a precipitar-se nos julgamentos e cita Montesquieu, de quem é fã: não faça ao outro o que você não deseja nem para você. Depois olha Ahmed nos seus belos olhos castanhos e pergunta-lhe “Ahmed, amigo, tu escondeste um engenho nuclear? Responde-me”. Ahmed comove-se. Pela primeira vez na vida é tratado como uma pessoa por um agente da autoridade. Citando Homero: “a vida reserva supresas para você, se deixe deslumbrar por ela.”Lembra-se de todas as vezes em que o desemprego elevado e a exclusão social o obrigaram a ser extremista. E confessa tudo. Confessa como não escondeu apenas um engenho, mas quatro, também há um no Porto, outro em Faro, outro em Leiria. Dá as coordenadas precisas e, depois de olhar para o relógio do agente Leonardo, avisa que vão explodir dentro de cinco minutos, mais coisa menos coisa. As capazes forças de segurança portuguesas, nomeadamente, a GNR Antiminas aerotransportada, lança cães especialistas de para-quedas, a partir de helicópteros. Os canídeos, depois de aterrarem, conseguem rapidamente escavar buracos e meter neles as bombas e tapá-las com terrinha, com as patas de trás. Apenas as toupeiras num raio de 200km não ganharam para o susto.  Como o leitor pode ver está desmontado o primeiro cenário em que …

4 thoughts on “eu confesso que fui um dos candidatos a escrever o livro de José Sócrates

  1. Cuspir no chão do Vasco da Gama parece-me coisa de gajo de esquerda. Subiste 50 pontos na minha cotação blogueira e olha que, por causa dos textos onde entra a Julinha, o maior dos estupefacientes deste blogue, porventura da tua vida 🙂 já estavas num dos lugares cimeiros.

  2. É impressão minha ou, desde que foste pai, andas cada vez mais a alinhar politicamente pela “disciplina” e pelo “respeitinho”?

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