Descobri há tempos que queria muito tirar fotos a paisagens e cidade pelos locais por onde corro, pedalo ou pesco. E comecei a estudar e a apetrechar-me. Ao contrário do que se pode supor, quando aprendemos sobre um tema e o praticamos, ganhamos mais humildade perante os desafios dessa prática e mais admiração perante os que são bons a praticá-la. Não gera a arrogância de nos julgarmos iguais.
Sou um amador principiante na fotografia e sei que é a forma de arte mais irritante à face da terra. Qualquer pessoa pensa que é fotógrafa, bem sei. Da minha parte, vou dedicar-lhe o mesmo tipo de energia obsessiva que dedico a tudo aquilo a que me disponho estudar e aprender.
Estou num momento em que várias peças de mim estão a cair em engrenagens novas. É claro que todos estamos sempre em mudança, mas há períodos mais críticos, períodos em que o nosso contexto muda. O meu mudou. A solidão, por exemplo, que nunca fora o problema, começou a adensar-se e por vezes foi opressiva nos dias sem a minha filha. Às vezes deixo os brinquedos da minha filha exactamente onde ela os deixou, no sofá, no chão, para a casa parecer um instantâneo de quando ela estava ali. Também não é tanto por não ter oportunidades de eliminar a solidão, mas mais por não ter vontade de agir nesse sentido, uma vez que depois quando tenho tempo livre, prefiro dedicá-lo a coisas. Como aprender fotografia. Ou correr.
Desde que comecei a treinar ultramaratonas, no espaço de um ano, vi mais coisas em cidades (especialmente Lisboa) e serras do que em toda a minha vida antes disso. O meu mapa mental expandiu-se. Onde antes havia manchas difusas de floresta, campo ou subúrbios, passaram a existir micro-detalhes: estradas, caminhos, trilhos, árvores, encostas, rios, cafés, prédios, vedações, passeios, pedras, cães que ladram, flores. Mesmo uma estrada feita 500x de carro é completamente diferente quando corremos na sua berma.
Locais que outrora me intimidavam um pouco, passaram a ser confortáveis e uma extensão do meu próprio bairro, até porque parto do meu bairro e vou pelo meu pé.
Comecei a pouco e pouco a sentir-me mais à vontade, fosse na minha cidade ou no escuro, de noite, numa serra, sozinho.
Mas se a fotografia de paisagem urbana ou natureza tinha sido o primeiro motivo, a verdade é que logo da primeira vez em que usei uma lente prime de 25mm (em micro 4/3 para os entendidos, conversão é 50mm para uma full frame 35mm), sem zoom, boa para fotografia de rua, vi-me em diversas situações em que o ideal seria ter-me aproximado mais das pessoas, porque as pessoas eram de longe o mais interessante. E pedido licença para as fotografar. Seria impossível tê-las fotografado sem dar nas vistas, com uma lente assim não há hipótese.
Se na parte técnica é natural ir estudando e treinando, o principal obstáculo a boas fotos desse tipo é ser uma pessoa tímida nessas situações. Gosto de contar histórias e não consigo se não tiver rostos humanos.
Aqui por exemplo, devia ter-me aproximado da rapariga da tatuagem que está a ler um livro ou da outra figura ao fundo no muro.
A própria composição ficou estranha porque havia tanta gente que eu não me sentia à vontade para andar a correr de um lado para o outro a apontar a máquina.
Aqui,não tive coragem de fotografar os pescadores da Corvina na zona do Beato. Estão atrás do carro, sentados à sombra da bagageira. Eram castiços, mas sei que os pescadores podem ser territoriais e era estranho aparecer um tipo do nada a perguntar “posso tirar umas fotos”?
Podia fazer uma série só com os pescadores de Peniche que vejo no Cabo Carvoeiro e no pontão, nos cafés. Falo com eles, pesco com eles… agora vou ganhar coragem para os fotografar de perto? Veremos. Gostava. Sei que também será mais fácil quando tiver mínimos técnicos para despachar fotos competentes depressa e em segurança. Não me estou a ver a pedir ao pescador para, por favor, tirar de novo o peixe da água, porque a foto ficou queimada.
Ainda houve um quiosque dos camionistas e estivadores na zona do porto de Lisboa, dois putos mitras a andar na linha de comboio, uma turista extremamente bonita, uma mãe e filho a andarem na ciclovia da Belavista, e um grupo enorme de jovens misteriosamente agrupados num pontão abandonado. Tudo em 90 minutos de bicicleta. Tudo imagens que não captei como queria, só porque isso implicava aproximar-me das pessoas.
No fundo, sei que basta sorrir e pedir licença, eliminando rapidamente qualquer sensação de se ser creepy ou stalker. Suponho que parte do talento dos grandes fotógrafos de rua estará simplesmente na lata e na capacidade de empatia com quem é fotografado.
A fotografia de rua e retrato é, portanto, um desafio de mudar instintos meus, um processo que já tinha começado com o nascimento da minha filha. Andar com ela no baby carrier enquanto canta ou levá-la tipo saca de batatas aos berros ao ombro para fora de um pingo-doce com toda gente a olhar para mim, é extremamente terapêutico para forjar indiferença aos olhares. E as interacções sociais que ela gera, em qualquer semáforo em que pare com ela às costas enquanto está a cantar, também contribuem para me suavizar a desconfiança natural que nutro pela espécie humana. Às vezes ainda fico surpreendo de haver outras pessoas a gostar do mesmo que eu e a comover-se. Talvez um dia consiga fotos em que desconhecidos olham directamente para a objectiva, olhos nos olhos. Talvez não. Não é dramático. E para treinar, vou usar amigos.
(os comentários no post abaixo eram para aqui; está visto que preciso de férias)
Foi o novo template que te confundiu! E obrigado.
Esse teu ar determinado esconde uma amabilidade que me envergonha 🙂
Go, man 🙂
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eu sou tão oposta que só posso apreciar a tua atitude. E, raios, adoro a Julinha, a menina da gaveta 🙂
Gosto do teu “despretenciosismo”. Hoje em dia toda a gente pensa que tira boas fotografias, é verdade. As máquinas digitais e a facilidade com que se edita uma fotografia ajudam, mas uma fotografia vale (para mim) pela composição. Não há filtros ou lentes que substituam o olho que capta aquela imagem. Para mim é um pouco como a escrita: toda a gente sabe escrever, mas apenas uma minoria escreve textos que vale a pena ler e reler. Em tempos jurássicos cheguei a tirar um curso de fotografia, ainda o digital ia no adro, e lembro-me daquilo que um dos professores disse: uma boa fotografia é aquela em que não é preciso mexer em mais nada, nem cortar, sobre-expor, nem ampliar, nada. Uma fotografia excelente é aquela em que, para além disso, se capta o exacto momento em que ela é perfeita.
Gostei muito do que o teu olhar regista. Espero que continues a partilhar fotos de algumas das coisas que observas.
A minha relação com a fotografia também foi alterada por uma lente ‘prime’. No meu caso a lumix 20mm/1.7, igualmente numa micro 4/3 (já vou na segunda máquina, mas às vezes sinto-me a apostar num formato que não vai vingar, como aqueles gajos que ouviam Super Audio CDs) .
Além do aspecto da mobilidade, também fiquei fascinado com a capacidade de fotografar com pouca luz destas “lentes rápidas”. Há uns tempos trouxe uma lente antiga yashica 50mm/1.8 da casa de uma tia. A lente não é grande coisa, mas na máquina fica uma 100mm/1.8, que é uma relação interessante. Tive de comprar um adaptador no ebay, e claro que passa tudo a manual, mas dá para fazer uns retratos giros.
Não sou mais que um amador, mas outra coisa que alterou desde que comecei a fotografar numa máquina que suporta RAW, foi ter percebido a importância da “revelação”. Não vou discutir o valor sacrossanto da fotografia não-editada, mas às vezes transformam-se fotografias banais em imagens que estão mais perto do momento que tentámos fotografar. Ou noutras coisas. Ou então percebemos que a fotografia não tem salvação porque falhámos no momento do disparo.
Não sei se alguma vez vou conseguir ultrapassar a timidez de fotografar estranhos, mas agora ando numa fase de tirar fotografias a prédios, menos mau.
“Sou um amador principiante na fotografia e sei que é a forma de arte mais irritante à face da terra. Qualquer pessoa pensa que é fotógrafa, bem sei. Da minha parte, vou dedicar-lhe o mesmo tipo de energia obsessiva que dedico a tudo aquilo a que me disponho estudar e aprender.” – prevejo uma hecatombe… vais perder o encantamento pela imagem, vais-te tornar um daqueles insuportáveis “bate-chapas” da fotografia, incapaz de olhar para qualquer imagem sem dizer “usaste a lente x, não foi? mas olha que isto tinha ficado melhor com um segundo a menos de exposição e…”, e vais fertilizar o solo deste asseado blog com coisas como “testes fotográficos”, a fotografar o mesmo car**** do mesmo copo de água com lentes diferentes… Não vás tão depressa por essa noite escura, rapaz.
Achas, meu urso? as tais lentes, aberturas, filtros, tempos de exposição, composição básica, etc. são, por assim dizer, a ortografia, a gramática ou a semântica da fotografia. Não é isso que distingue um poema do Fernando Pessoa de um manual de instruções de um frigorífico. O que eu quero é não pensar na técnica no momento e não ter grandes obstáculos entre mente e execução, mas não desprezemos a importância de uma sílaba a mais ou uma repetição fora do sítio num poema. O ser crítico depois e ver o que falhou ou podia melhorar é saudável. Quando tenho tempo fotografo o mesmo copo com lentes e settings diferentes (metaforicamente falando) embora não divulgue essas coisas, para depois poder saber exactamente como fotografar um copo único num momento único com tudo certo. Pelo estudo incluo o ver fotografia, trabalhos de fotógrafos, perceber o que gosto e porquê e sobretudo muitas experiências, andar sempre com máquina, esgotar temas, momentos, tirar milhões de fotos ao mesmo cabrão de pontão enferrujado ali no Beato, até um dia as nuvens estarem exactamente como queria e a luz ser exactamente a que queria e eu estar lá e pronto.
Gosto tanto do que aqui leio e vejo. Não tenho muito tempo para ler blogs, mesmo os poucos da minha eleição, por isso quando aqui venho leio-o de uma ponta à outra. Calha que vi este post e o dos dias azuis ao mesmo tempo. As suas fotos contam histórias, é o que dizem que as fotos devem ser, histórias. Mas gosto especialmente das histórias que conta sobre as fotos, lá está, também dizem que uma boa foto não precisa de legenda, mas estas ficam especiais também por causa da história que conta sobre elas.
Gosto de tirar fotos, de certa maneira é uma coisa que preciso de fazer porque tenho medo de me esquecer. Nunca serei uma fotógrafa não consigo fixar as fórmulas técnicas. Já tirei cursos e acabo sempre a usar o automático. Por vezes tento o manual mas faço tudo por tentativa e erro e nunca mais consigo reproduzir uma fórmula em que tenha acertado. Talvez seja melhor nos enquadramentos mas mesmo esses… vejo tantas fotos, fotos verdadeiramente boas que acho sempre que aquelas que tiro são cópia de qualquer coisa que já vi. Sou uma empírica mas também não pretendo ser mais do que isso, só tiro fotos para não me esquecer.