Há filmes cujos os “stills” são quase todos merecedores de serem fotos por si só. Neste campo, um dos objectos que acho mais curiosos é o Buffalo 66 porque mistura um relativo caos à Cassavetes no argumento, mas depois tem um rigor formal próximo de Kubrick. Tati, ou Hitchcock com orçamento mínimo.
Tudo em cada plano é meticuloso. O filme é todo a madeira, branco sujo, verde pastel e vermelho sangue, azuis diluídos. Até num grande plano da Cristina Ricci encontramos os tons dominantes do filme, nos lábios, nas pálpebras.
A atmosfera gerada acaba por ser o oposto do realismo de Cassavetes em que a envolvente orgânica reflectia o agumento e mais próximo de um universo Lynch, onírico, de subúrbio americano, retro, que acentua um lado ingénuo que o filme tem.
Tal como em Lynch existem sequências em que a iluminação deixa de ser realista e introduz a visão subjectiva de uma personagem ou um mundo de sonho, mergulhando tudo na penumbra menos a personagem.
O tom pastel e ‘envelhecido’ da imagem, o grão, a aparência low cost e do i yourself dá ao filme uma atmosfera retro dos anos 60. Foi mesmo filmado em 35mm num formato (reversal film stock) que já foi descontinuado há muito e que se caracterizava por ser muito instável e imprevisível.
O filme é de 1998. Se hoje é comum depois dos filtros do instagram ou dos sucessos do intragável Wes Anderson, na altura esta estética era extremamente fora. E envelheceu bem, talvez por ser genuinamente analógica.
O filme foi filmado em muito pouco tempo (23 dias) o que ainda faz sobressair mais a obsessão necessária para certos planos. Em geral o mundo é geométrico e regular. Isso cria um contraste com os corpos de Gallo e Ricci, como se ambos fossem desajustados ao mesmo, como dois animais vadios à solta. No still acima o corpo em movimento e na diagonal de Gallo em contraste com as linhas da pista de bowling e os pinos.
A postura corporal de ambos é “implodida” em quase todas as cenas, como se estivessem “apertados”.
As pernas de Ricci no plano acima, os braços em V de Gallo e Ricci.
Gallo em diagonal na cama rectangular.As roupas deles por outro lado estão amontoadas.
A banheira (obviamente com azulejos esverdeados), tons pastel, Gallo em posição fetal a atrofiar. Ele é excelente a atrofiar. Não encaixa na banheira. A cena deixa uma sensação desconfortável. Outra pessoa deslizaria e deixava-se ficar submersa.
Gallo tenta dormir num banco de jardim na neve. Vertical, horizontal. Só o corpo dele é uma coisa que não encaixa em lado nenhum e se torce toda ao frio contra uma superfície dura.
Mas um dos motivos pelos quais também acho filme lindo é pela Cristina Ricci. Tendo mesmo neste filme bastante peso a mais para os padrões de Hollywood, o cast foi perfeito. A cara redonda e expressiva, as formas voluptuosas, são o contraste perfeito quer para a atmosfera fria e geométrica do mundo do Buffalo 66 e mesmo para o próprio Gallo, anguloso, magro, pontiagudo, a começar pelas botas. Ricci é como uma ursinha de peluche, quente e fofinha. Uma ursinha muito, muito sexy.
uma nota final para o Tiago: atentai na ocultação de mãos em quase todos os planos em que poderiam perfeitamente ser visíveis 🙂
🙂
Há bocado fui ver um dos livros que comprei recentemente. um livro muito especial. à 2ª fotografia (seg. 4 do video em baixo) apareceu logo um desafio ao texto das mãos…
mãos alinhadas, uma delas sem estar em perfil, dedos dobrados e não “slightly bended”… uma fotografia linda, por sinal.
vai à feira dos livros de fotografia no fim‑de‑semana!