Uma das coisas que me surpreendeu na fotografia, especialmente na era digital da hiper sofisticação, é como a componente óptica, de metal, vidro e plástico, tem ainda o papel fundamental. Não me refiro apenas a sharpness ou quantidade de luz, como se para ter belas fotos fosse preciso ter uma espécie de performance técnica. Por vezes é o metal e o vidro, nas suas imperfeições, a conferir algo único à foto.
Li recentemente o livro de Todd Hido da colecção da aperture, em que Todd dá uma espécie de aula e comenta as suas fotos, a sua evolução, as suas técnicas – não tanto as técnicas de fotografia, lentes ou revelação, mas o processo geral.
Todd fotografa as suas paisagens atrás do vidro do carro, um vidro que pode estar sujo, com condensação, gotas de chuva ou gelo. Esse vidro distorce a paisagem, coloca fisicamente o espectador na cena e reforça o que se quer transmitir: frio, humidade, isolamento. Seria irónico precisar de uma máquina de precisão suprema se o resultado final estará distorcido, baço. Nos retratos pode desfocar, utiliza 2-3 máquinas, incluindo uma point and shoot igual à primeira que teve em criança.
Curiosamente, Hiddo colabora com Raymond Carver. Várias capas de livros do Raymond Carver são com fotos do Hiddo. Ambos partilham a mesma sensibilidade, um na literatura, outro na fotografia.
Gosto muito do trabalho do Hiddo. É democrático. Abre as portas para possibilidades não restritas pela técnica ou pelo acesso a coisas difíceis ou implausíveis próprias de abordagens mais clássicas. Por exemplo, não podemos fotografar um pimento como o Edward Weston sem uma máquina de médio formato. Não é isso que faz a foto, como é óbvio, mas é a ampliação e o detalhe extremo, bem como a ausência de distorção que nos faz ver um pimento como nunca antes vimos um pimento.
Hiddo faz-me acreditar que no plano técnico, até com um telemóvel podemos fazer fotografia interessante. Está para a fotografia como estaria o John Fante ou o Bukowski para a literatura. Não os colocaria ao lado dos Tolstoi, Beckt ou Kafkas, mas mexem tanto comigo como estes últimos e inspiram mais. São mais “punk” se podemos usar o termo. Não esmagam porque usam a nossa linguagem.
Por exemplo, esta foto do Larry Fink esmaga.
Como esmagam as fotos de famosos que faz. Ter a Merryl Streep e a Natalie Portman a interagir num momento de emoção é 99% de qualquer coisa. Claro que faz parte do talento de Fink enquanto fotógrafo estar lá e captar. Mas de novo, não depende de grandes variáveis de performance de lentes e máquinas hoje em dia no século XXI.
A fotografia continua a ser o que sempre foi, apenas mais fácil e democrático, facilitando a transformação do trabalho. Hiddo acabou por me fazer prestar atenção às simulações de filmes analógicos. Ou seja, em XXI onde acho que há uma revolução é muito mais nas possibilidades criativas da pós-produção, das escolhas.
Alguns exemplos de domingo no cabo da roca.
As lentes que usei têm uma resolução extraordinária. Existem originais destas fotos com um nível de detalhe superior e objectivo, mas em todas introduzi outro nível de ruído e tentei apenas que todo o “set” tivesse um tratamento coerente e semelhante a um filme de rolo analógico. A propósito de precisão, não é verdade que o analógico tenha mais que o digital, há alguma confusão nos conceitos, mas isso é para lá do ponto aqui. Ainda estou em experiências, mas gostei do resultado. A base foi uma emulação do Kodak Ektar 100 com desvio para tons frios porque estavam mais condizentes com o dia (gelado, chuva) e o que significa olhar para o mar em fevereiro. A luz, cortesia em parte da nuvem de pó que passava pela península ibérica aquela hora, era perfeita e não tive de fazer nada à exposição.
Percebi por Hiddo e por outros (mesmo o grande Ansel Adams) que a manipulação da cópia não é algo a evitar. Vejo muitas vezes a tag #nofilter ou #semfiltros em fotos nas redes sociais, como se os ditos filtros fossem batota. São só a continuação do acto criativo. Podem é tornar uma foto desinteressante ou previsível ou artificial, pois se toda gente só precisa de clicar num botão para aplicar um de 10 filtros à escolha, é natural que ao fim de algum tempo isso canse e prejudique a foto, uma vez que aplicar um filtro pode não ser um acto criativo per si.
A mim, agrada-me o uso de técnicas que me reportam à fotografia com que cresci, as fotos que tenho nos meus álbuns, saturadas, com grão.Transmite-me logo algo de melancólico ou vagamente familiar, que fotos demasiado limpas não dão. Podem dar outras coisas, mas este sentimento específico não.
A foto do Larry Fink com o tipo idoso a olhar para a lente é qualquer coisa de brutal. Sinto-me assim em todas as festas. 🙂